OPINIÃO – Quem são os reais invasores do espaço público?

Autores: Ana Carolina Nunes, Andrew Oliveira e Du Dias
Data: 20/06/2016

Quem anda na cidade tendo que desviar de inúmeros obstáculos e às vezes se lançar ao asfalto para poder seguir seu caminho sabe bem: os espaços públicos de convivência ou mobilidade de nossas cidades há muitos anos vêm sendo privatizados. Este uso privado do que é público não nos é danoso pelo fato de cada vez mais pessoas usarem determinado equipamento ou espaço, e sim porque há quem se sinta no direito de invadi-lo, apropriar-se do mesmo e distorcê-lo permanentemente em seu próprio e exclusivo benefício. A lógica perversa do Estado, no entanto, faz vista grossa em muitos destes casos, mas age com rigor desproporcional em outros.

As investidas das fiscalizações municipal ou estadual nos espaços públicos, muitas vezes de caráter midiático e higienista, recaem com frequência sobre o comércio ambulante informal e os moradores de rua. Mas poucos se atentam aos verdadeiros saqueadores urbanos.

Ninguém parece notar os muros e fachadas de edificações residenciais ou comerciais que avançam sobre o passeio, que deveria ser livre. Mesas e cadeiras de bares e restaurantes obstruem totalmente o fluxo de pessoas, mas são toleradas. E a maior transformação dos espaços de mobilidade de quem se locomove a pé, as calçadas, ocorreu silenciosamente nas últimas décadas: a privatização dos trechos em frente aos lotes de casas e comércios. Esses locais se tornaram acessos prioritários, quase exclusivos, de veículos motorizados aos lotes, onde seus proprietários se viram no direito de colocar degraus, rebaixar guias, colocar pisos inadequados — infringindo leis municipais que exigem um calçamento com uma inclinação transversal constante e superfície regular, firme, contínua e antiderrapante sob qualquer condição — apenas para ter um melhor acesso às suas garagens.

Essa desproporcionalidade é injusta e, além de tudo, não garante nada em termos de conforto e segurança às pessoas que se locomovem a pé na cidade, inclusive porque tolhe o direito à circulação e permanência aos cidadãos que vivem nas ruas. Por isso é importante ressaltar que pessoas em situação de rua têm tanto direito de usufruir do espaço público como qualquer outro indivíduo, com a única diferença de não possuírem CEP ou pagarem IPTU. E essa condição não os torna menos cidadãos nem justifica suprimir seus direitos. Porém, nossa sociedade tornou-se permissiva com as violações praticadas por aqueles que têm posses, poder aquisitivo e situação privilegiada, e repressiva quando se trata das necessidades ou direitos das camadas menos favorecidas social e economicamente. Qual será a origem da cumplicidade do poder público e seus órgãos fiscalizadores (e repressores) com os verdadeiros usurpadores do espaço? Por que há desproporcional rigidez (violência) com aqueles que SÓ têm o espaço público?

Se o ativismo em prol da mobilidade ativa e mesmo as administrações públicas adotam o discurso das “cidades para pessoas”, devemos sempre ter no horizonte os mais variados tipos de pessoas e usos possíveis da cidade. É muito perigoso cair na tentação de defender uma cidade com mobilidade exemplar, porém homogênea e asséptica. Essa não é a nossa realidade e não é nesse paradigma que vamos nos espelhar. Cada vez que falamos em cidades para pessoas, devemos responder à mesma pergunta: “Para quais pessoas?!” Se não for para todas, é porque estamos entrando novamente no caminho viciado da cidade excludente.

Cidades devem ser lugares abertos, democráticos, de permanência e encontro, diversidade e inclusão. O contrário disso não é uma cidade, é um clube privado ou um grande condomínio fechado.

Exemplo pouco percebido de apropriação do espaço público: a calçada, que é pública, se transformou para acomodar os desejos dos donos dos lotes quando instalaram suas garagens. Rua Barão do Bananal, na Pompeia, antes e depois das entradas de garagem.

Exemplo pouco percebido de apropriação do espaço público: a calçada, que é pública, se transformou para acomodar os desejos dos donos dos lotes quando instalaram suas garagens.
Rua Barão do Bananal, na Pompeia, antes e depois das entradas de garagem. Foto montagem: São Paulo em Foco

Imagem do post: Carro estacionado na calçada. Foto: Andrew Oliveira

OPINIÃO – Sobre o relatório de vítimas fatais no trânsito paulistano

Autor: Joana Canêdo*
Data: 15/05/2015

A semana que se seguiu à publicação do Relatório de acidentes de trânsito fatais da CET, referentes ao ano de 2014, foi repleta de análises da mídia. O grande destaque foi para o número de morte de ciclistas que teria aumentado — mas que deixou de levar em consideração a quantidade de ciclistas em circulação, ou seja, proporcionalmente ao uso de bicicletas, as mortes de ciclistas diminuíram 10% em São Paulo.

Fiquei me perguntando por que não pareceu chocante para ninguém que  a maior vítima do trânsito na capital paulista sempre foi, e continua sendo, os pedestres. E isso mesmo quando os acidentes estavam em queda. (Entre os poucos jornais que tocaram no assunto estão:  Metro e Agora, e o portal Mobilize; e a Globo fez uma reportagem específica sobre a avenida mais letal da cidade).

CET relatorioanualacidentesfatais2014 - grafico 12.2

CET relatorioanualacidentesfatais2014 - grafico 14.2

Por que tão pouca gente  comentou que tantas pessoas morrem atropeladas todos os dias em São Paulo. Será que essa “fatalidade” é normal?

Os pedestres representam a maioria dos usuários das vias da cidade, mais de 13 milhões de pessoas se deslocam a pé todos os dias na RMSP (contra 12 milhões de carros). Ainda assim todo o planejamento do viário é pensado e estruturado para facilitar o fluxo, e com isso a velocidade, dos veículos e o conforto dos motoristas, demonstrando que a segurança no trânsito não é prioridade das ações de mobilidade na cidade.

Em São Paulo, as velocidades máximas permitidas nas ruas são assustadoramente altas, o que aumenta a gravidade dos atropelamentos,  a maior causa de fatalidades no trânsito da cidade.

CET relatorioanualacidentesfatais2014 - grafico 1.2

Além disso há uma cultura de desrespeito às leis básicas do trânsito, como parar na faixa para o pedestre atravessar, prioridade do pedestre na conversão, ultrapassar o limite de velocidade da via, etc. Sem contar uma engenharia de tráfego que calcula tempos semafóricos em função do número de carros na via e não em função do tempo necessário para as pessoas atravessarem, para citar apenas alguns exemplos de como as pessoas que caminham estão sempre em último lugar na escala de prioridades.

É urgente que a cidade abra os olhos e reaja para a segurança dos atores mais vulneráveis da mobilidade urbana: as milhões de pessoas que andam pelas ruas e calçadas de São Paulo todos os dias e se encontram constantemente em situação de risco.

Segunda o relatório da CET, em 2014, 44,4% das vítimas fatais do trânsito foram pedestres, 555 no total, sendo que 537 deles morreram atropelados, em sua grande maioria por automóveis (45%, seguidos de ônibus, 26%, e motos, 20%). Esse número significa um aumento de 8% na morte de pedestres, quando comparado a 2013.

CET relatorioanualacidentesfatais2014 - grafico 1.3

De todas as mortes de pedestres, mais de 35% foram de pessoas com mais de 60 anos – sinal de que os mais velhos, com mais dificuldade de deslocamento e de atenção, enfim os mais vulneráveis, são as grandes vítimas.

CET relatorioanualacidentesfatais2014 - grafico 10.3

O perfil sócio econômico das vítimas se equivale ao perfil socioeconômico da população abrangida pelo Modal a Pé na Pesquisa de Origem e Destino do Metrô (2007).

CET relatorioanualacidentesfatais2014 - grafico 10.4

Quanto ao local dos acidentes fatais, eles estão espalhados por toda a cidade. Mas observando bem o os mapas é possível identificar pontos específicos onde é nítida a necessidade de ações estratégicas para evitar mortes.

É o caso, por exemplo, do centro da cidade, onde a restrição da circulação de veículos poderia ser ampliada, uma vez que é uma área com grande número de circulação de pessoas a pé e com ampla estrutura de transporte público.

As marginais do  Tietê e do Pinheiros, ao lado das avenidas Marechal Tito e Teotônio Vilela, foram as recordistas de atropelamentos fatais, indicando uma óbvia necessidade de reduzir a velocidade máxima permitida nessas vias imediatamente.

A Zona Leste precisa de uma atenção especial, pois é a região na cidade com o maior número de vítimas fatais, ultrapassando 17% do total das 10 regiões consideradas, sendo que quase 50% das vítimas da região eram pedestres.

Há várias outras conclusões que podem ser tiradas deste relatório e que deveriam subsidiar políticas públicas voltadas para a segurança sobretudo do pedestre, o ator mais vulnerável da mobilidade.

É preciso destacar que, apesar de 32% das viagens serem feitas exclusivamente a pé na cidade (e esse número não inclui caminhantes que vão para os pontos de ônibus, estações de trem, até a padaria do bairro ou almoçar ao meio-dia), o pedestre é sempre o último a ser considerado nas políticas públicas. Quando essas o fazem, é dificultando a sua vida ou os infantilizando.

Os chamados projetos de segurança para o pedestre incluem a instalação de  barreiras físicas em cruzamentos onde há muito trânsito de veículos – o que aumenta a distância e diminui a eficiência dos trajetos. Isso é uma inversão da prioridade, garantida por lei, ao pedestre pois, segundo o art. 38 do Código Brasileiro de Trânsito, “o condutor deverá ceder passagem aos pedestres e ciclistas” ao fazer a conversão. Com essas barreiras, a CET passa, na prática, a prioridade ao condutor do veículo. E não vou nem citar as campanhas “educativas” que idiotizam o pedestre ao exibir palhaços atravessando fora da faixa.

São portanto mais do que urgentes políticas públicas voltadas especificamente para a segurança das pessoas que andam pela cidade, as grandes vítimas do trânsito urbano

Entre as primeiras medidas que devem ser tomadas estão:

1) Redução da velocidade dos veículos automotores nas ruas – por meio de redução do limite das velocidades das vias, mas também através de ações de engenharia, como implantação de traffic calming, implantação de ciclovias, estreitamento das faixas em avenidas, plantio de árvores no centro da via, entre outros.

2) Uma verdadeira reeducação do trânsito, na qual todos os atores aprendam e obedeçam às regras mais fundamentais do CTB, como a mais óbvia, de respeitar o limite de velocidade da via, mas também a de que (Art. 44): “ao aproximar-se de qualquer tipo de cruzamento, o condutor do veículo deve demonstrar prudência especial, transitando em velocidade moderada, de forma que possa deter seu veículo com segurança para dar passagem a pedestre e a veículos que tenham o direito de preferência”.

Pequenas reduções de velocidade diminuem de forma significativa as mortes no trânsito. Gráfico- WRI Brasil - EMBARQ Brasil Impactos da Redução dos Limites de Velocidade em Áreas Urbanas

Pequenas reduções de velocidade diminuem de forma significativa as mortes no trânsito. Gráfico- WRI Brasil – EMBARQ Brasil Impactos da Redução dos Limites de Velocidade em Áreas Urbanas

Veja aqui um estudo da WRI Brasil – EMBARQ Brasil sobre o Impacto da redução dos limites de velocidade em áreas urbanas

Veja aqui as recentes propostas da prefeitura de São Paulo quanto a redução de velocidade em algumas avenidas da cidade

* Agradeço as sugestões de Rafael Calábria e as colocações de Meli Malatesta.