130 Anos da Avenida Paulista – O resgate do pedestre

A Avenida Paulista é um lugar síntese da metrópole paulistana que configura a grande maioria das representações de vida na cidade e acima de tudo, um espaço universal, previsto para todos

Por Wans Spiess (Diretora de Relacionamento da Cidadeapé), Thaty Tamara Baldini Galvão, Isabella Gadotti Narciso

Originalmente publicado em A Vida No Centro

A Avenida Paulista, que completa 130 anos no dia 08 de dezembro de 2021, consegue traduzir em seu espaço físico as transformações ocorridas na sociedade paulistana. A região continua representando, na sua mais atual versão, um dos principais centros financeiros da cidade e um importante núcleo de relações sociais. Com base na sua história e evolução urbana, analisadas em perspectiva historiográfica e a partir da  leituras de seus projetos, propõem-se identificar três momentos distintos da evolução da Avenida Paulista, em se tratando do pensamento que valoriza a relação da inserção do pedestre na cidade, sendo o primeiro o Calçamento a Paulista para urbanizar (1891-1960), o segundo o Alargamento a Paulista para pedestrianizar (1960-2010) e o terceiro a Expansão a Paulista para democratizar (2010-2021).

Calçando a Paulista para urbanizar (1891- 1960)

Construída no alto do espigão da cidade de São Paulo, a 900 m do nível do mar, a Avenida Paulista foi inaugurada em 1891 com configuração de algo nunca visto até então: muito larga, com 2.800 metros de comprimento, tinha três faixas pavimentadas com pedregulhos brancos, destinadas ao bonde, às carruagens e aos cavaleiros, separadas por magnólias e plátanos. Joaquim Eugênio de Lima, à época prefeito da cidade, ao nomeá-la proferiu a frase que ficaria marcada na história da cidade: “Será então Paulista, em homenagem aos paulistas”.

Na época, a Avenida já se caracterizava como grande esplanada ou boulevard. Registros fotográficos, imagens e relatos demonstram a preocupação em disponibilizar espaços generosos para pedestres e veículos de transporte por tração animal então utilizados. Apesar da demarcação para acomodar os diferentes usos, há o compartilhamento do leito por pessoas, animais e bondes.

Inauguração da Av. Paulista. Aquarela de Jules-Victor-André Martin (1832-1906). Fonte: Jose Rosael – MP/USP

A Avenida desponta como promessa de um lugar atraente para o passeio, sendo comparada a espaços assim reconhecidos na Europa, referência de qualidade em espaço público. Os passeios aos domingos na região eram concorridos, e as disputas pelo espaço sempre foram presentes, gerando as primeiras leis municipais que tentam regularizar o uso do espaço público no local.

“(…) A Avenida Paulista, um dos pontos mais belos de nossa capital e que sem dúvida constitui hoje um dos passeios mais procurados, principalmente aos domingos, não tem tido a devida atenção do poder público. Há tempos chovem reclamações à Municipalidade, pela imprensa contra o fato de ali passarem, boiadas com direção ao Matadouro, com grande prejuízo da arborização que lá se fez, reclamações essas que determinaram uma lei (…) baixada com o fim de proibir este abuso (…) ainda ontem, garantem-nos informações fidedignas, lá passaram duas boiadas. E não é somente isso (…) também por uma célebre corrida de pequenos veículos que ali se faz aos domingos, as pessoas (…) no intuito de vencer umas às outras, disparam os cavalos, metendo os veículos por entre as árvores, resultando ora em uma delas resvalarem ora quebrar um engradamento (…). (06 de Maio de 1894)

Em 1909, o calçamento – até então de pedregulhos, é recoberto por asfalto trazido da Alemanha, tornando-se a primeira via asfaltada da cidade. A partir daí, as demais ruas da cidade foram ganhando o mesmo tipo de pavimentação, numa demonstração clara de que, àquela época, a Avenida Paulista já ocupava posição de destaque como prática urbanística, tornando-se referência para toda a cidade.

A partir da década de 1930, os casarões da elite abrem espaço para a construção dos primeiros edifícios residenciais e instalações comerciais. As décadas subsequentes, sobretudo os anos de 1950 e 60,  seriam marcadas por uma transformação da paisagem da Avenida Paulista, devido ao desenvolvimento da metrópole que se formava. Em 1962, a inauguração do Conjunto Nacional é um marco, como o primeiro edifício comercial da Avenida Paulista que consolida a transformação em relação ao uso e ocupação dessa importante via. O projeto do Conjunto Nacional introduz o tema da integração do térreo do edifício com a rua, configurando um espaço permeável que permite a circulação livre de transeuntes que adentram o prédio. O exemplo de fruição entre o público e o privado que a Avenida oferece é reforçado com a inauguração do Museu de Arte de São Paulo – MASP e o seu vão livre (1968) e com as escadarias abertas que se tornariam símbolo de fruição pública, do edifício da Fundação Cásper Líbero (1972). 

Alargando a Paulista para pedestrianizar (1960-2010)

O fim dos anos 1960 é marcado pela crescente presença de automóveis, caminhões e carros em circulação, o que motiva a realização do projeto Nova Paulista (1968), o qual propõe o trânsito rápido de veículos por via subterrânea, e a liberação da superfície para instalação de um boulevard, onde haveria apenas trânsito local de autos.

Perspectiva do projeto Nova Paulista pelo Arquiteto Nadir Cury Mezerani. Fonte: Escritório Nadir Mezerani/Reprodução.

Porém, com a necessidade de incorporar mais um nível de circulação para a linha metroviária, as obras da Nova Paulista são paralisadas e, na gestão seguinte, o projeto é de vez interrompido. Recentemente, por ocasião das discussões em torno da ciclovia na Paulista (2014), o projeto Nova Paulista foi retratado na mídia como o sonho de recuperar um ambiente que priorizasse as pessoas:

Se uma obra iniciada na década de 1970 tivesse sido concluída, a polêmica não existiria e os ciclistas circulariam com mais liberdade pela avenida. Como? Os carros e os ônibus passariam por uma via subterrânea. A Paulista seria uma esplanada livre para caminhar e pedalar. De quebra, o prejuízo ao trânsito de veículos durante festas e manifestações realizadas na avenida seria resolvido ou minimizado […] Era uma obra que deveria se completar no ano 2000, isto é, quando ela se transformasse, na superfície, em uma grande esplanada. […] A ideia era preservar a convivência social e permitir que a pessoa andasse e atravessasse a rua sem precisar ir até o próximo quarteirão […] (06 nov. 2014).

Em 1973, inicia-se um novo processo de reformulação e ampliação de pistas da Avenida Paulista, para acomodar o traçado das obras do metropolitano. Apesar do projeto ter sido originalmente criado enfocando a melhoria da circulação de veículos na cidade, o desenho proposto apresenta calçadas generosas, obtidas com a desapropriação das frentes dos lotes lindeiros, que perdem partes de seus jardins. É contratada a elaboração de uma programação visual e tratamento paisagístico específicos para a avenida, cujo desafio era incorporar os acessos pré-existentes, abrigar a intensa circulação de pedestres prevista e devolver aos frequentadores da região parte dos jardins perdidos.

Todas as entradas, travessias previstas e acessos necessários foram estudados para dar vazão à mobilidade a pé, o que inclui a proposta das largas faixas de pedestres com posicionamento inédito no Brasil, associadas à sinalização para os pedestres. Os canteiros, desenhados inicialmente ao nível do piso, recebem plantas cultivadas em recipientes de fibra de vidro e transportados para o local de forma provisória para a inauguração, que com a permanência e aprovação, transformam-se em muretas de delimitação não previstas originalmente – uma ação que caracteriza um projeto experimental e derivado da situação, o que é recorrente e aceito hoje em dia. Destaca-se, também, o projeto de Rosa Kliass para as calçadas, cobertas por pedras portuguesas formando faixas brancas e pretas, conhecido como mosaico paulista.

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Mosaico Paulista na Avenida Paulista. Fonte: Arquivo do escritório Rosa Grena Kliass.  

Esta nova configuração contribui para a identidade da Avenida Paulista como lugar de passagem, mas também de permanência e de uso da cidade. No decorrer dos anos seguintes, a Avenida Paulista continua atraindo parcelas crescentes da população pela presença de equipamentos públicos, pela existência cada vez maior de instituições de naturezas distintas que promovem atividades culturais, mas, principalmente, pela facilidade de acesso e de circulação a pé.

Importante ressaltar que, nesse mesmo período, acontecem as negociações do Programa de Intervenção em Ruas Comerciais, ou seja, é notória a aproximação do poder público e da iniciativa privada à requalificação do espaço urbano. A região da Avenida Paulista apresenta uma particularidade: vários empreendimentos culturais e atividades de marketing cultural são financiados por instituições privadas presentes na região, como o Instituto Itaú Cultural, o Espaço Banco Real (assim conhecido mais recentemente) e pelo poder público, como a Casa das Rosas.

Ao entender o potencial de ocupação da Avenida para outros usos, um grupo de empresários forma a Associação Paulista Viva para, em 2004, propor à Prefeitura de São Paulo a experimentação de uma série de bloqueios para veículos em algumas quadras na Avenida Paulista, os chamados Domingos na Paulista, iniciativa que influenciará diretamente mais tarde o desenvolvimento do Programa Paulista Aberta. Os primeiros domingos do projeto Domingos na Paulista foram bem sucedidos e atraíram grande público, e a prefeitura decide estendê-lo para outras regiões da cidade. O sucesso é reconhecido também pela mídia, que destaca a necessidade dos paulistanos por áreas de convivência e lazer na cidade, conforme os trechos das matérias a seguir:

Domingo na Paulista toma mais 1 quadra O projeto de atividades de lazer Domingo na Paulista irá ocupar hoje duas quadras da avenida Paulista, entre a rua Pamplona e a rua Peixoto Gomide, das 9h às 14h. Nos três domingos anteriores, o evento foi realizado em frente ao Masp e ao parque Trianon. A programação de hoje inclui prática de ioga, apresentações de teatro, oficinas culturais […]. O projeto será realizado por mais dois domingos e poderá se estender até o final do ano. (DOMINGO NA…, 20 jun. 2004, grifo nosso)

A Avenida Sumaré será a mais nova rua de lazer de São Paulo, iniciativa do projeto Nossa Rua da Secretaria Municipal de Esportes (Seme). […] Esta é a segunda intervenção da Prefeitura na região sudoeste. A primeira experiência é a do Domingo na Paulista, que […]  recebe uma média de 30 mil pessoas. O evento reúne várias atividades em um trecho de apenas 240 metros. (SUMARÉ SERÁ…, 18 set. 2004, grifo nosso).

São Paulo tem fome de novas áreas de lazer. É o que demonstra o sucesso da interdição para veículos da avenida Sumaré no último domingo, entre as 9h e as 14h. De acordo com os organizadores, 60 mil pessoas acorreram aos 2,5 km de vias que foram reservados para quem queria divertir-se. O público na Sumaré superou até os 35 mil que estiveram na avenida Paulista, que, desde meados deste ano, também fecha para carros aos domingos. […] Espera-se que a prefeitura viabilize e multiplique iniciativas como a da avenida Sumaré. O sucesso de público que foi a estreia da interdição dá bem a medida de quanto o paulistano sente falta de novas e mais áreas de lazer na cidade. (22 set. 2004).

Contudo, no ano seguinte uma nova gestão assume a Prefeitura, determinando um período de suspensão ao projeto, sob a alegação de evitar problemas à rotina dos moradores e a geração de trânsito no entorno. São propostas mudanças no formato do programa e novos testes, e ainda que esses tenham confirmado uma aprovação média elevada, a Prefeitura justifica a descontinuidade da ação. O projeto Domingos na Paulista, que teve origem no entendimento da sociedade brasileira como um novo mercado consumidor por parte das elites, não é acompanhado pelo reconhecimento da cidadania e direito à cidade. A acessibilidade que os transportes de massa conferiram à Avenida Paulista – com sua generosa rede de ônibus e metrô, contrapõe-se à estratégia de construção da invulgar espacialidade almejada pelas classes sociais privilegiadas presentes na região, desencadeando uma disputa de forças onde as elites não abrem mão de sua excepcionalidade.

Vale destacar que a Avenida Paulista não deixou de sofrer os inevitáveis processos de deterioração, comuns a todas as áreas públicas da cidade. Ainda em 2004, em declaração para o jornal O Estado de S. Paulo, o então presidente da Associação Paulista Viva, Nelson Baeta, alertava: “As calçadas esburacadas, por exemplo, são o principal alvo de reclamações. Um perigo para o pedestre”.

Assim, após 30 anos sem reformas, em 2007 –, é apresentado um novo plano de requalificação das calçadas da Avenida, com a promessa de trazer à via total acessibilidade. O projeto tem origem no Plano Emergencial de Calçadas – PEC e tem a pretensão de colocar em prática o conceito de rota acessível, com implantação de rampas de concreto pré-fabricado nas travessias, com larguras proporcionais à Avenida e demolição de sarjetas e guias para reconstrução de acordo com as novas regras. Também é definido como piso ideal, o que é feito em concreto moldado no local, com juntas de dilatação em latão, uma opção que levou em conta a durabilidade, a facilidade de manutenção e o conforto para caminhar. Essa foi, sem dúvida, uma vitória da Secretária da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida – SEPED (criada em 2005) bastante comemorada na ocasião:

A Paulista é a síntese desta nossa metrópole que mescla arte, educação, cultura, trabalho e lazer. É, definitivamente, um local de todos. E hoje este caráter está renovado, quando a avenida torna-se, de fato, um espaço universal. A revitalização das calçadas finalizada em 2008 permitiu que a via se tornasse um exemplo de acessibilidade sem igual na América Latina, possibilitando melhores condições de mobilidade com conforto para todos, sobretudo àqueles que mais precisam. Além de diversa e dinâmica, a Paulista transformou-se, enfim, em um local inclusivo e acolhedor para todo paulistano (MARA GABRILLI, 2015).

De acordo com a Prefeitura,  a cidade de São Paulo tem cerca de 34 mil km de calçadas e, desse total, apenas 16% são de responsabilidade da gestão municipal. O PEC autoriza a prefeitura a executar as obras nas calçadas, inclusive de propriedade particular, tornando-se a principal ação do poder público frente aos problemas e demandas da população por melhorias na mobilidade a pé. Assim, mais uma vez, a Avenida Paulista torna-se modelo, lugar estratégico para inaugurar novos planos e programas, tirando proveito de sua localização e poder simbólico. Esse posicionamento será peça importante para as ações que promovem o programa Paulista Aberta.

Expandindo a Paulista para democratizar (2010-2021)

Os primeiros anos da década inaugurada em 2010 são marcados por movimentos de ação coletiva, capitaneados principalmente por jovens que atuam conectados em redes sociais digitais a partir de uma atuação horizontal. Os meios digitais são utilizados para facilitar a comunicação e transmissão de informações, e passam a ser uma potente forma de engajamento social e fonte de conteúdo. Observa-se nessa articulação uma complementaridade entre on-line e off-line, ou seja, as redes sociais funcionam como papel de aglutinação de interesses e promovem os encontros no espaço urbano, onde as formas de mobilização ganham novos contornos.

Essa nova articulação social reforça a presença do movimento ativista urbano nas discussões das cidades. São jovens dispostos a mostrar que “é possível fazer política de outra maneira, não formal, nas ruas, com as vozes e corpos presentes e suas ressonâncias”, influenciando de forma significativa a composição de forças que irão propor a Paulista Aberta.

O Dia Mundial sem Carro (22 de setembro) oferece a possibilidade de experimentar a potência de vida nas cidades quando mais pessoas são convidadas a caminhar, pedalar ou permanecer nos espaços públicos. Nessa mesma direção, a ocupação de praças, ruas e avenidas tem se constituído como “esfera política de liberdade e de constituição de cidadania, ao mesmo tempo em que recrudesce o confronto entre formas de mobilidade – individual e coletiva, motorizada e não motorizada”.

Pensando nisso, para comemorar o Dia Mundial sem Carro em 2012, diferentes entidades – tais como o recém-criado coletivo SampaPé! (cidades caminháveis), a Ong Ciclocidade (mobilidade e uso da bicicleta) e o Instituto Akatu, lançam o convite virtual para o encontro presencial nomeado Praia na Paulista. Potencializada pelas redes sociais, a mobilização toma conta da Praça do Ciclista com cadeiras de praia, cangas, boias e guarda-sóis, e conta com a presença de um público diverso de mais de mil pessoas.

Para a ocasião, os organizadores do evento pedem o fechamento da última quadra da Av. Paulista próxima à Rua da Consolação (local onde a Praça do Ciclista se localiza), o que não foi autorizado pela Prefeitura sob a alegação de atrapalhar o tráfego de veículos com respaldo do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) – decorrente do fato da Avenida Paulista sempre ter sido palco de manifestações populares, atividades coletivas ou comemorações, o TAC foi instituído com o intuito de assegurar ao menos uma das faixas de circulação livre em caso de manifestação popular. Reconhecem a Avenida Paulista como sede de grandes eventos, porém limitados a três manifestações por ano: a Parada do Orgulho LGBT (nome atual), a corrida de São Silvestre e a festa de Réveillon. Esses argumentos conflitam com a pauta da mobilidade ativa e do direito à cidade, defendida pelos organizadores do evento Praia de Paulista:

Não somos contra o carro. Mas queremos mais espaço para pedestres, bicicletas e transporte coletivo – que no nosso entender deveria ser priorizado. […] Ações como esta, de pessoas e para pessoas, podem mudar especialmente a relação que temos com a cidade (26 set. 2012).

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 Eventos na Avenida Paulista: do lado esquerdo, eventos espontâneos, Caras Pintadas (1992) e Jornadas de Junho (2013) e do lado direito os eventos programados, Corrida de São Silvestre (2018) e Parada LGBT (2015).

Nesse contexto, é inaugurada a Ciclofaixa da Paulista, no dia 2 de setembro de 2012, com recorde de público. A nova ciclofaixa levou ciclistas, mas também muitas outras pessoas que foram passear atraídas pelo espaço que já era percebido como avenida-parque.

A Avenida Paulista – que normalmente já se transforma em uma espécie de parque aos domingos – ficou ontem ainda mais animada com a inauguração oficial da ciclofaixa de lazer. A novidade fez sucesso entre os paulistanos […] A ciclofaixa atraiu até mesmo quem não tinha bike. O gerente de pizzaria Clei Barros, de 37 anos, saiu cedo do Jabaquara, na zona sul, para levar o sobrinho Victor Fernando Amigo, de 13 anos, à Avenida Paulista (03 set, 2012).

A Ciclofaixa da Avenida Paulista recebe no dia de sua inauguração cerca de 40 mil ciclistas. Fonte: Alex Silva/AE. 

Dada a excepcional acessibilidade que os transportes públicos de massa oferecem à região, a Avenida Paulista é exemplo de ressignificação do espaço público e das relações entre os cidadãos e suas experiências de mobilidade e espacialidade, o que, por sua vez, suscita a espacialização de conflitos das múltiplas mobilidades que precisa acomodar. Assim, ainda que a implantação da ciclofaixa tenha sido um sucesso, o movimento veio acompanhado de muitos questionamentos:

O embate entre os defensores – ou mais que isso, amantes – das ciclofaixas em São Paulo e aqueles que sofrem com o trânsito mais intenso na cidade dia após dia tende a se acirrar neste fim de ano. […] é latente a pergunta: e quem utiliza o carro, cuja compra continua estimulada por imposto reduzido? E o transtorno que tem sido provocado aos domingos em tantas ruas e avenidas de São Paulo? É justo o motorista, que já sofre durante a semana, ser penalizado também no seu dia de descanso -e de trabalho para muitos outros? (21 nov, 2012).

Apesar dos embates, e em sintonia com as legislações federal e municipal que priorizam a mobilidade ativa, em 2013 são realizados estudos concretos para a infraestrutura cicloviária, agora voltada à promoção do uso da bicicleta não só como lazer, mas também como meio de transporte urbano. As discussões culminaram com as obras de implantação da agora definitiva Ciclovia da Paulista, iniciadas em janeiro de 2015. A inauguração aconteceu no domingo, dia 28 de junho de 2015, com a abertura completa da Avenida Paulista também para as pessoas sob a justificativa de segurança dos ciclistas. Assim, a nova via exclusiva para bicicletas – com 2,7 quilômetros de extensão, da Praça Oswaldo Cruz à Avenida Angélica, foi acompanhada pelo fechamento da Avenida Paulista aos carros e aberta às pessoas a partir das 10h, permanecendo assim até as 17h, entre os trechos da Praça do Ciclista  e Avenida Brigadeiro Luís Antônio.

O investimento na política cicloviária é acompanhado por investimentos em faixas exclusivas de ônibus e por medidas de redução de velocidade viária, o que recrudesce o debate sobre a distribuição do espaço das ruas entre os modos de transporte, visando maior equidade no uso das ruas. Vale lembrar que aproximadamente 80% do sistema viário são ocupados por automóveis, responsáveis por cerca de 30% das viagens diárias, e a mobilidade a pé, responsável por outros 30% das viagens diárias. (METRÔ, 2017).

Ao incidir politicamente para a abertura da Avenida Paulista aos domingos, a sociedade civil organizada fortalece a inserção do pensamento pedestre no planejamento e discurso da Prefeitura. Surgem na prefeitura novos estudos sobre uma possível abertura da Avenida Paulista aos domingos. Com o parecer favorável da equipe técnica para a possibilidade de fechar o trânsito da avenida todos os domingos, no dia 23 de agosto de 2015, a via é novamente aberta para as pessoas, dessa vez das 10h30 às 17h30, entre a Rua da Consolação e Praça Oswaldo Cruz, para a inauguração de um novo trecho de ciclovia na Avenida Bernardino de Campos, conectada à da Paulista

Avenida Paulista aberta para as pessoas e fechada para os carros. Fonte: Márcio Fernandes/OES. 

A Prefeitura alega que a abertura da Avenida Paulista para os pedestres não é um evento, mas sim uma política pública permanente. Argumenta que sua adoção está em linha com as diretrizes políticas estabelecidas pelo PNMU (BRASIL, 2012), com as discussões presentes no PlanMob/SP (SÃO PAULO, 2015), e que favorece o cumprimento do Plano de Metas elaborado pela Prefeitura para a gestão 2013-2016. A Prefeitura compromete-se, ainda, a realizar estudos baseados em dados dos hospitais, clubes e condomínios da região da Paulista para validar opiniões e impactos. Todas essas declarações são sinalizações importantes na medida em que contribuem para a efetiva análise e avaliação da política pública praticada, informando o necessário debate político.

Desse modo, a Avenida Paulista passou a ser aberta todos os domingos e feriados a partir do mês de outubro de 2015, das 10:00 às 18:00, sendo que neste período, toda extensão da Avenida fica livre para o uso público, para os frequentadores, além de enfatizar o ato de caminhar, correr, andar de bicicleta, proporcionando a interação com artistas de rua e as demais outras atividades que o fechamento da Avenida é capaz de oferecer.

A ocupação da rua aos domingos acontece de forma bem democrática. Enquanto grande parte dos edifícios encontram-se fechados, inclusive as galerias comerciais, o comércio ambulante ocupa boa parte das calçadas, principalmente junto aos edifícios com acesso bloqueado, configurando novas “fachadas” temporárias durante o evento da Paulista Aberta.

De 2015 a 2018 os índices de aprovação do programa junto à população aumentaram consideravelmente: de 47% em outubro de 2015 a 97% em outubro de 2018, indicando sua consolidação enquanto destino e alternativa de lazer aos finais de semana. Entre os moradores da região, os índices também subiram: em fevereiro de 2016, 61% dos entrevistados 29 declararam ser favoráveis à abertura da Avenida Paulista, já em 2018 , o índice de aprovação 30 subiu para 71%.

Entre 2017 e 2018 três novos centros culturais foram inaugurados na Avenida Paulista, o Instituto Moreira Salles, a Japan House e a unidade do SESC, que hoje formam, junto com o MASP, a Casa das Rosas, o Centro Cultural FIESP e o Instituto Itaú Cultural a chamada Paulista Cultural – iniciativa pioneira que propõe diálogo e intercâmbios de programação entre 7 instituições culturais localizadas na avenida. Inseridas neste novo contexto da avenida, após a implantação da ciclovia e consolidação do programa Paulista Aberta, as instituições compreenderam a importância de dialogar com o uso de lazer já consolidado aos domingos.

Para o aniversário de 130 Anos da Avenida Paulista em 2021, estão previstas a entrega de um quarteirão que foi revitalizado e o anúncio do projeto de um novo Boulevard para região – ao longo da Alameda das Flores e no trecho da Rua São Carlos do Pinhal entre a Alameda das Flores e Rua Itapeva, ambos com foco em priorizar a circulação de pedestres, com inclusão social e para a realização de atividades socioculturais e educacionais. Tudo isso reforça a visão de como as discussões sobre a apropriação dos espaços se transformaram desde a inauguração da avenida em 1891 e para podermos afirmar que a Avenida Paulista incorpora a materialização física do zeitgeist, o espírito do tempo.

Vida longa à Avenida Paulista!

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Formado pelas pesquisadoras Wanessa Spiess (Wans, do CalçadaSP e Diretora de Relacionamento da Cidadeapé), Thaty Baldini Galvão e Isabella Gadotti Narciso, o coletivo Balé da Cidade busca, com base em pesquisas práticas e reflexões diárias, a ampliação sobre estudos urbanos e a criação de novas maneiras de enxergar a cidade ao enfatizar a questão da inserção e valorização do pedestre. Por meio de discursos que valorizam a experimentação da urbe e a sua apropriação, nasceu uma série de artigos sobre a cidade de São Paulo,  especificamente sobre lugares icônicos que possuem grande potencial para serem palco de representação de vida na cidade, assim como lugares que se destacam pela multiplicação da cultura e atividades praticadas pelas pessoas.

O primeiro artigo da série O Resgate do Pedestre, trouxe reflexões sobre o Vale do Anhangabaú e como esse espaço evoluiu concomitantemente as evoluções da cidade de São Paulo. No estudo do Vale, foi destinada especial dedicação à visão sistêmica da escala humana de seus projetos, a fim de demonstrar as mudanças de pensamento, de suas escolhas e decisões, que acompanharam transformações e momentos importantes da metrópole paulista. Já o presente artigo sobre a Avenida Paulista, o segundo da série, é baseado em um capítulo da dissertação de mestrado de Wans Spiess, cujo tema central é o pensamento pedestre.

Referências:

Narciso, I.G.; Galvão, T.T.B.; Spiess, W. O resgate do pedestre na apropriação do Vale do Anhangabaú. A: Seminário Internacional de Investigación en Urbanismo. “XII Seminário Internacional de Investigación en Urbanismo, São Paulo-Lisboa, 2020”. São Paulo: Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, 2020, DOI 10.5821/siiu.9783. (https://upcommons.upc.edu/handle/2117/336416).

SPIESS, W. Por um pensamento pedestre : a dinâmica de políticas públicas do sistema pedestre em São Paulo – rua Oscar Freire, rua Galvão Bueno e avenida Paulista (2000-2020). 2021. 231 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2021. (http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/4737)

Crédito da imagem da capa: Leco Viana/TheNews2/Estadão Conteúdo

O que esperar da próxima gestão?

Participamos de um bate-papo promovido pelo pessoal da Cidade dos Sonhos analisando as propostas e perspectivas da próxima gestão da Prefeitura de São Paulo para a Mobilidade a Pé. Confira no vídeo abaixo.

“Este é o segundo vídeo sobre o balanço da checagem que fizemos em parceria com Aos Fatos. Além das calçadas, muito citadas pelo futuro prefeito, o que mais pode e precisa ser feito pela mobilidade a pé na cidade? Segundo os posicionamentos de João Doria o programa Ruas Abertas vai continuar e se expandir? E qual a sua importância para a população de São Paulo? As reduções de velocidade possuem mesmo um impacto direto nos pedestres? Essas e outras respostas você confere no vídeo!

Participam Ana Carolina Nunes do Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo, Rafaella Basile do Cidade Ativa e Tai Nalon do Aos Fatos. Quem apresenta é Bernardo Camara.”

“Por uma Av. Paulista Aberta: em diálogo com o MP”

Publicado originalmente em: ObservaSP
Autoras: *Letícia Lemos, **Luanda Vannuchi, ***Raquel Rolnik e ****Paula Santoro
Data: 22/10/2015

Comentário Cidadeapé:  Apoiamos a abertura da Paulista para as pessoas aos domingos. O texto abaixo, do ObservaSP,  toca nos pontos principais da argumentação do MPE contra essa iniciativa. Gostaríamos de estabelecer um diálogo direto com o MPE para tentar garantir uma boa solução para os usos do espaço viário. Ao mesmo tempo continuamos a conversar com a prefeitura no sentido de ajustar detalhes para melhorar a experiência para todos.

No último domingo, dia 18 de outubro, entre às 9h e às 17h, a avenida Paulista foi novamente aberta para pessoas como área de lazer, medida que deverá se repetir todos os domingos de agora em diante, segundo anúncio da prefeitura municipal. Festejada pela população, que lotou a avenida, apesar do frio, a medida foi contestada pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo (PJHURB) do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP) em duas notas à imprensa divulgadas nos dias 15 [1] e 16 de outubro [2]. Com argumentos conservadores e um claro posicionamento a priori contra a mudança no uso da via, a promotoria promete estudar as medidas cabíveis – incluindo ação civil pública e multa – caso o prefeito Fernando Haddad não reveja seu posicionamento.

Elencamos e discutimos abaixo os principais argumentos contidos nas notas:

O MP indica que a abertura da avenida para os pedestres está sendo “imposta à população sem que esta, sua destinatária final, tenha realmente oportunidade de externar sua opinião e anseios” e afirma que não há como saber “se a população é a favor ou contra a medida por inexistirem estudos ou pesquisas (por entidades independentes) nesse sentido”. Argumenta ainda que a audiência pública realizada no vão do MASP não tem valor estatístico.

Conforme amplamente noticiado pela mídia, foram realizadas pesquisas que indicaram aprovação tanto da população quanto do comércio local que abre aos domingos [3]. Mesmo entre aqueles que utilizam o carro diariamente ou quase diariamente, 54% se mostraram favoráveis a essa ação [4].

Para além das pesquisas, a medida está respaldada pela Política Nacional de Mobilidade Urbana: o Inciso I do Artigo 23 garante aos entes federativos utilizar como instrumento de gestão “restrição e controle de acesso e circulação, permanente ou temporário, de veículos motorizados em locais e horários predeterminados” [5].

Além disso, ao questionar a representatividade estatística da audiência pública realizada no vão do MASP no dia 19 de setembro, o MP põe em xeque a legitimidade de qualquer audiência pública já organizada na cidade, por não terem nunca reunido um número de pessoas capaz de distinguir a posição da maioria. A audiência pública enquanto instrumento democrático não pode, e nem tem como objetivo, equiparar-se em representatividade aos processos eleitorais ou plebiscitos.

O MP argumenta que a Paulista foi “concebida e construída para veículos” e que sua abertura para o lazer da população traz “inúmeras implicações e impactos”.

Primeiro é importante ressaltar que a cidade é produto da ação humana para o ser humano, ou seja, ela não é feita para veículos. A Av. Paulista foi concebida e construída para abrigar a aristocracia do café. Esta mesma avenida, quando aberta em 1898, abrigava a circulação de carruagens e bondes. Hoje, os palacetes, bondes e carruagens desapareceram para dar lugar a ônibus, carros, pedestres e ciclistas. Nenhuma rua ou avenida é estática: os modos de ocupar e circular se transformam e é próprio da política pública promover estas transformações. Além disso, é comum que alterações tenham impactos. No caso da abertura da Paulista para lazer, acredita-se que em geral serão impactos positivos. Para medi-los, a CET fez estudos e apresentou-os ao MP, prevendo medidas para mitigar eventuais transtornos.

A nota do MP faz menção aos estudos realizados pela CET, indicando que seriam baseados em “modelos teóricos ou, na melhor das hipóteses, em dados colhidos nas duas únicas oportunidades em que o fechamento se deu”.

Em primeiro lugar, os modelos teóricos são e devem ser usados para o planejamento. Caso contrário, a única base de análise seriam levantamentos empíricos e, na impossibilidade de realizá-los, nunca seria possível prever o impacto de nada e ficaríamos a mercê do status quo, eternamente. A questão é: quando um estudo é suficiente e perfeito em se tratando de um organismo vivo e dinâmico como a cidade? Não existe perfeição, muito menos decisão absolutamente tecnocrática, decorrente de estudos infalíveis. O que existem são alternativas, construídas frequentemente a partir de opções políticas que devem ir ao encontro do interesse público.

Um dos argumentos que serve como base para esses “modelos teóricos” está no fato de que as vias do entorno têm capacidade para receber o volume de veículos que circula na Av. Paulista. Segundo depoimentos de técnicos da CET, a Alameda Santos e a Rua São Carlos do Pinhal têm capacidade para receber os veículos que deixarão de circular pela Paulista aos domingos, por volta de 2 mil veículos por sentido, de acordo com contagens realizadas pelo órgão antes do primeiro fechamento da via. O principal conflito para o fechamento é a travessias dos ônibus pela Av. Brigadeiro Luiz Antônio, mas o cruzamento aí está sendo mantido.

Além disso, análises baseadas em dados empíricos também são fundamentais. Podem e devem subsidiar os estudos de impacto desse tipo de medida. Durante as duas experiências de abertura da Paulista, as medições realizadas pela CET demonstraram que a ação causou um baixo impacto no trânsito local. É comum que medidas de alteração de tráfego nas primeiras vezes que são realizadas impactem mais que nas demais, uma vez que alguns motoristas ainda desconhecem as alterações. O que reforça o argumento de que as duas medições são relevantes e suficientes para uma boa análise técnica.

Como já apontado, a cidade é dinâmica. Nada impede que novas medições sejam feitas no futuro, em processo de monitoramento que nos ajudará na tomada de decisões que vão na mesma direção de abrir outras avenidas para pessoas. Afinal, estamos construindo uma nova forma de utilizar os espaços públicos da cidade e não podemos refutá-la em função de um suposto desconhecimento preciso sobre sua implantação.

O MP apresentou à prefeitura “medidas alternativas” ao fechamento total para veículos em audiência realizada em setembro, sobre as quais a gestão deveria se posicionar até o dia 15 de outubro, o que não aconteceu.

Conforme reportado por veículos de comunicação no dia 08 de outubro (Estadão [6], UOL[7]), a alternativa que teria sido indicada pelo MP seria a manutenção de uma faixa de rolamento para veículos motorizados em cada sentido. Ora, não é de se espantar que a prefeitura não tenha acatado essa proposta, visto que a manutenção da circulação de automóveis, e ainda em ambos os sentidos, desconectando tanto as calçadas quanto as ciclovias das demais faixas destinadas ao lazer, implicaria em risco aos pedestres, ciclistas, crianças, praticantes de esporte etc.

Cabe ao MP indicar os problemas decorrentes da opção da Prefeitura, fazer recomendações, solicitar soluções (sem direcioná-las ou impô-las), e avaliar as medidas técnicas propostas pela gestão. Se o problema é o acesso aos imóveis pela Av. Paulista, a Prefeitura já afirmou que ele será garantido para os moradores ou trabalhadores da região. Em relação ao acesso aos hospitais, o Santa Catarina será o mais impactado, pois o acesso ao seu estacionamento se dá diretamente pela Paulista, mas também para esse caso a Prefeitura anunciou que está prevista uma faixa para acesso local.

Assim, escapa ao papel do MP a proposição de “medidas alternativas”. Formular política pública é papel da gestão pública. Criar soluções técnicas é papel dos órgãos competentes.

O MP argumenta que a atual gestão adota “posições radicais” ao defender o fechamento da avenida para carros – ao contrário do próprio MP, que buscaria “soluções alternativas que realmente democratizem a utilização dos espaços públicos”.

Em primeiro lugar, é exagerado considerar uma “posição radical” o fechamento de 4,5 km de via para carros, a fim de criar áreas de lazer na cidade de São Paulo, quando em várias outras cidades no Brasil e no mundo essa já é uma prática antiga. No Rio de Janeiro, as avenidas Atlântica e Vieira Souto, que beiram as praias de Copacabana e Ipanema, são fechadas para carros aos domingos já faz muito tempo. Na Cidade do México, 50 km de vias são dedicadas ao lazer aos domingos. Em Santiago do Chile, são 30 km. Além dessas cidades, Bogotá, Nova York, Paris e Londres também têm experiências semelhantes, que são consideradas um sucesso.

O problema nesse argumento vai mais além. Não cabe ao MP determinar se uma política pública é “radical”, principalmente dentro de um debate onde se criam oposições e no qual o próprio Ministério já demonstrou ter posicionamento definido.

Finalmente, a nota remete ao Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2007 com a Prefeitura de São Paulo. Esse termo limita a três por ano os fechamentos da Avenida Paulista para grandes eventos.

A abertura da Paulista aos domingos, para ser usada como local de lazer pela população, não é um evento, mas algo permanente, constante, já que se trata de uma política pública. Portanto, não se enquadra como “evento”, conforme descrito pelo próprio TAC, e logo este não pode servir para impedir que a abertura ocorra.

Portanto, não há sentido algum em recorrer ao TAC para esse debate. Se esta visão prevalecer e o MP resolver se ater ao TAC, significa então que restam duas opções que acirram antagonismos entre nós, cidadãos, dado que a Av. Paulista já abrigou o máximo de eventos permitidos em 2015: ou cancelamos a São Silvestre e a festa de Réveillon, se a circulação de automóveis, no dia 31 de dezembro, for prioridade absoluta para a cidade, ou então o MP poderia propor uma revisão desse TAC.

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Por fim, mas não menos importante, o Ministério Público é uma instituição de relevância inegável na defesa dos direitos difusos, que tem uma atuação fundamental, inclusive para coibir abusos e ilegalidades praticados pelo Executivo e por outros agentes que atuam sobre a cidade. É fundamental que o MP continue tendo força nesse trabalho.

Mas no caso da abertura da Paulista, não podemos aceitar o posicionamento desta promotoria, que tem se mostrado conservador e pouco flexível em relação ao plano de uma administração municipal democraticamente eleita de reduzir a importância do transporte individual motorizado na cidade de São Paulo, abrindo ciclovias e áreas de lazer em espaços antes reservados exclusivamente aos carros. Com notas como essa, o MP corre o risco de diminuir sua credibilidade enquanto órgão tão fundamental, verdadeira conquista de nossa sociedade.

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Foto: Flávio Moraes.

Foto: Thiago Benicchio

* Leticia Lemos é arquiteta e urbanista, mestranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e compõe a equipe do observaSP. Tem especialização em mobilidade não motorizada pela UNITAR.

**Luanda Vannuchi é geógrafa, mestre em estudos urbanos pela Vrije Universiteit Brussel e faz parte da equipe do observaSP.

***Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e uma das coordenadoras do observaSP.

****Paula Santoro é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e uma das coordenadoras do observaSP. 

 

Imagem do post: Paulista Aberta. Foto: Letícia Lindenberg Lemos

Avenida Paulista para as pessoas: uma demanda da sociedade civil

Ao contrário do que o Ministério Público Estadual aponta, a proposta da Paulista Aberta aos domingos surgiu de uma demanda da sociedade civil e tem ampla aprovação.

Na última semana, o Ministério Público Estadual de São Paulo, por meio do promotor Mário Augusto Malaquias, da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, abriu inquérito (429/2015) para investigar o bloqueio da Avenida Paulista a veículos automotores e a abertura da via aos domingos para as pessoas a pé, em bicicletas, em outros modos de locomoção ativos e usufruindo de atividades culturais.

O inquérito do MPE-SP se baseia em uma suposta violação do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a realização de eventos de grande porte e de duração prolongada na Avenida Paulista do ano de 2007 (Inquérito Civil nº 283/03), firmado com a Prefeitura. O TAC estabelece que a Avenida Paulista poderá ser fechada para “eventos, manifestações, comemorações ou outras atividades de duração prolongada que impliquem a obstrução dessa via pública e que necessitem da autorização da PREFEITURA” apenas três vezes ao ano. O objetivo é garantir “direitos de locomoção, direito à cidade ordenada (garantindo a trafegabilidade, a acessibilidade, o conforto e o sossego, com o menor impacto possível no período de obstrução do sistema viário)”.

A Avenida Paulista tem um longo histórico de abertura para pessoas, seja em eventos, como palco de manifestações ou espaço de lazer. Quase semanalmente a avenida tem seu tráfego de veículos motorizados interrompido por movimentos políticos, sociais e culturais das mais diferentes matizes. No Natal, intensifica-se o fluxo a pé de pessoas que vão à avenida para ver a iluminação temática e fazer compras. Na gestão de Marta Suplicy o projeto Domingo na Paulista já transformava a via em área de lazer. Esta ação contou com 76% de aprovação da população e chegou a reunir 35 mil pessoas, mas foi interrompida no início da gestão Serra.

Ao longo do ano de 2014 a sociedade civil, por forma de ocupações e estratégias de pressão, retoma o pleito de usar a via como espaço de lazer aos domingos e pressionar a gestão municipal, nomeadamente o secretário de transportes Jilmar Tatto e o prefeito Fernando Haddad. Esta demanda, inspirada em outras cidades do Brasil e do mundo como Rio de Janeiro, Bogotá e Cidade do México, e a urgência de políticas para uma cidade mais humana com a promoção do usufruto dos espaços públicos, materializa-se com a abertura da Avenida Paulista nos dias 29 de junho e 23 de agosto de 2015, datas marcadas pelas inaugurações das ciclovias da Av. Paulista e da Av. Bernardino de Campos, respectivamente.

Estas experiências recentes são marcadas por grande sucesso. A CET relata baixo impacto no trânsito do entorno e ficou comprovada a alta aprovação por parte das pessoas que participam. Em pesquisa feita pela ONG Cidade Ativacom pedestres na avenida Paulista nos dias 28 de junho, 05, 15 e 18 de julho, 88% das pessoas se mostraram a favor da abertura da via para as pessoas aos domingos. Em mobilização articulada no site Panela de Pressão, 2.100 pessoas se manifestaram a favor da Paulista aberta aos domingos. Os hospitais da região, que poderiam ser contrários e constavam no TAC de 2007 como alguns dos impactados pela obstrução da via, afirmam que o fechamento da avenida para carros não afeta os atendimentos, conforme é destaque em grandes veículos de comunicação. Ainda assim, na última abertura da Avenida Paulista, em 23 de agosto, a CET fez uma operação especial para permitir o acesso de carros ao hospital Santa Catarina, ao club Homs e a hotéis. E outras adequações podem ser feitas, conforme demandas apontadas pelas empresas e moradores da região, visando a uma operação adequada a todos.

Diante desta massiva adesão e pensando a cidade como locus de democracia, é louvável que a Prefeitura volte a enxergar as vias públicas como espaço de convívio entre pessoas. Em especial a Paulista, por ser a avenida mais visitada da cidade, e uma das vias com maior fluxo a pé devido à sua extensa e diversa oferta cultural, comercial e de serviços de fácil acesso.

Consideramos que o Poder Judiciário tem um papel importante nos freios e contrapesos da democracia, principalmente no que diz respeito ao controle dos outros poderes em relação à Constituição e outras leis infraconstitucionais e à vontade popular. Contudo, ele não deve subjugar a vontade da população na formulação da agenda do Poder Executivo, como parece estar acontecendo. Pleiteamos a mesma visão da gestão municipal ao Ministério Público Estadual: que escute aos anseios da sociedade civil, ora manifestados por meio de organizações e coletivos que defendem a abertura da via para lazer aos domingos. É importante lembrar que a judicialização da questão da ciclovia da Avenida Paulista pelo MPE culminou com ênfase ao papel do Executivo pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Em acórdão, o desembargador relator do processo é claro ao afirmar que “o projeto de implantação do sistema cicloviário é um dos mais importantes da atual gestão municipal, eleita pelo povo paulistano para exercer as opções de políticas públicas nos assuntos locais, tal como é o trânsito, no exercício da competência do Município”.

Dito isso, solicitamos que o MPE-SP atualize a interpretação do TAC acima citado, levando em conta que seu texto está anacrônico em relação às novas visões de cidade e do uso do espaço público vigentes hoje na sociedade civil. Esclarecendo que em tal documento não consta a proibição do uso da via no caso de políticas públicas que possam trazer benefícios à população, como é o caso da abertura da Paulista para o usufruto dos cidadãos aos domingos.

Às entidades que ainda não estão convencidas sobre os benefícios da abertura da Avenida Paulista aos domingos ou não concordam com a mesma, propomos um diálogo franco e aberto, sem a necessidade de recorrer a processos judiciais, que tanto dificultam ouvir a voz da população.

Por fim, manifestamos aqui o nosso desejo de ver a abertura da Avenida Paulista aos domingos não como uma medida isolada, mas sim como uma ação, que abra caminho para um política pública de lazer e de humanização a ser estendida para toda a cidade de São Paulo. Sem cair em demagogias, é importante que essa expansão seja realizada em observância às demandas e peculiaridades de cada território.

Assinam embaixo:

SampaPé!/ Rede Minha Sampa/ Ciclocidade/ Greenpeace/ PaulistaAberta/ Pedal Verde/ Bike é Legal/ ITDP Brasil/ Acupuntura Urbana/ Instituto Aromeiazero/ Transporte Ativo/ Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo/ Catraca Livre/ Cidade Ativa/ Instituto Mobilidade Verde/ Laboratório da Cidade/ GT Mobilidade Urbana da Rede Nossa São Paulo/ Secretaria Executiva da Rede Nossa São Paulo/ Red OCARA – São Paulo/ Virada Sustentável/ Corridaamiga/ Pé de Igualdade

*Texto escrito por Ana Carolina Nunes, pesquisadora e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC, Letícia Leda Sabino, do movimento SampaPé e mestranda em Urban Design and City Planning da UCL em Londres e Rene Jose Rodrigues Fernandes, gerente de projetos do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da Fundação Getulio Vargas e pesquisador em Administração Pública e Governo.

Imagem do post: 23/08/2015- São Paulo- SP, Brasil-  Prefeitura  de São Paulo faz avenida Paulista virar pista de lazer exclusiva para ciclistas e pedestrtes. Foto: André Tambucci/ Fotos Públicas