“Documentário sobre dificuldades de locomoção no HC é lançado na Faculdade de Medicina da USP”

Publicado originalmente em: Instituto de Estudos Avançados – IEA-USP
Autor: Vinícius Sayão
Data: 21/09/2017

Comentário da Cidadeapé: Como é chegar a pé ao maior complexo hospitalar da América Latina? Esse documentário produzido pela USP retrata os principais desafios à locomoção de pacientes e seus acompanhantes no entorno do Hospital das Clínicas. Temos acompanhado um projeto da CET – Companhia de Engenharia de Tráfego de readequação e acessibilidade da região através da Câmara Temática de Mobilidade a Pé. Durante o mês da mobilidade, nossos articuladores Rafael Calabria e Meli Malatesta participaram de debates na USP para discutir soluções para os problemas de mobilidade da região.

Na tarde do dia 20 de setembro aconteceu a primeira exibição de ‘Dis’mobilidade Urbana, documentário sobre dificuldades de locomoção na região do complexo do Hospital das Clínicas (HC), produzido pela IEA e pela Faculdade de Medicina (FM) da USP, com apoio do HC. O lançamento ocorreu durante o encontro Novos Olhares sobre a ‘Dis’Mobilidade no Complexo do HC, inserido na programação da Semana da Mobilidade da Faculdade.

O documentário pode ser visto na íntegra aqui.

Alternando entre depoimentos e imagens, o filme mostra a dificuldade que diversas pessoas sofrem para chegar ao hospital. São recorrentes casos em que os pacientes chegam horas antes da consulta. O motivo é a existência de obstáculos no caminho, tanto a pé quanto de transporte público. Como mostrado, há pacientes com dificuldade de locomoção que demoram até 25 minutos para percorrer uma distância de cerca de 400 metros, entre o hospital e a estação Clínicas do metrô.

Uma outra paciente no documentário é uma menina de oito anos de idade, cadeirante. A mãe dela relata que para conseguirem subir da estação do metrô à Av. Dr. Arnaldo – não existe elevador ligando os dois pontos –, é preciso que algum funcionário se disponha a empurrar a cadeira-de-rodas, enquanto ela leva a criança no colo. “É sempre um constrangimento para ela, que não é mais tão pequena”, diz a mãe.

Em outro momento, é mostrado um cadeirante e seu acompanhante a caminho do hospital. Por diversas vezes os dois são forçados a transitar pela rua, no meio dos carros, porque as calçadas, cheias de obstáculos e buracos, não permitem a passagem da cadeira.

O problema do trânsito também é amplamente comentado no documentário. Na região, o tráfego atrasa – quando não impede – a chegada das ambulâncias. Apesar da existência de uma “ambulofaixa” na Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, a principal via do complexo, os veículos insistem em parar nela: “A pessoa não desce do carro. Ele fica e se a CET encostar, ele vai dar uma volta e parar aqui de novo”, comenta Rita Peres, coordenadora de segurança corporativa do Hospital. “Chegamos ao ponto de precisar ligar a sirene da ambulância para transitar dentro do complexo”, complementa Maria Amélia de Jesus, enfermeira coordenadora do plantão.

Funcionários do hospital relataram como muitas vezes o atendimento de emergência acontece no meio da rua, em casos que as ambulâncias não conseguem chegar. Também acontece frequentemente, segundo eles, de pacientes não conseguirem chegar ao setor onde serão atendidos, sendo socorridos em geral pela equipe do Hospital da Criança, que é o mais próximo da saída do metrô e no início da avenida.

A ideia de fazer o filme surgiu da percepção dos funcionários da Comissão de Sustentabilidade da FM de que era necessário fazer algo novo para a Semana da Mobilidade da FMUSP.

O filme foi produzido e dirigido pela jornalista Fernanda Cunha Rezende, que coordena a área de comunicação do IEA, com apoio dos funcionários do Instituto, da FMUSP e médicos do HC. O roteiro e edição são de Diego Machado.

Debate

Mesa Dismobilidade urbana - 1
Debateram, da esquerda para a direita, Paulo Saldiva, Rafael Calabria (Cidadeapé), Linamara Battistella, Júlia Greve e Helena Ribeiro

Após a exibição, o diretor do IEA e professor da FMUSP Paulo Saldiva; as professoras da Medicina Júlia Maria D’Andréa Greve e Linamara Rizzo Battistella, secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência; a diretora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, Helena Ribeiro e o geógrafo Rafael Gândara Calabria, da Cidadeapé, debateram o tema a partir do filme.

Saldiva comentou algumas de suas ideias para ajudar a solucionar os problemas de mobilidade na região, como solicitar ao metrô a implantação de um elevador que chegue ao nível da Avenida Dr. Arnaldo, visto que atualmente há elevador apenas entre o andar da plataforma dos trens e o das catracas, um abaixo do nível da avenida. Outra ideia é a possibilidade de serem oferecidas cadeiras de rodas emprestadas no metrô, semelhante ao sistema de bicicletas compartilhadas. O professor acredita que é necessário um “urbanismo pensando na qualidade de vida das pessoas”.

Concordando com Saldiva, Rafael Calabria disse ser necessário uma redistribuição do espaço da região: “Existem ambulantes na região, porque as pessoas que ficam fora do hospital precisam comer. Só uma lanchonete não dá conta. É preciso colocar os ambulantes em uma local que não atrapalhe a movimentação”.

Quanto ao trânsito a pé no complexo, os participantes do debate comentaram um projeto apresentado no filme, que propõe o fechamento da Av. Dr. Enéas apenas para o tráfego de ambulâncias e pedestres. “CET sempre foi negativa, porque, segundo ela, não teria para onde deslocar o trânsito”, explicou Helena Ribeiro. A Dr. Enéas fica entre duas vias movimentadas, a Rua Teodoro Sampaio e a Av. Rebouças.

“Do jeito que está, o ambiente da região reflete hostilidade ao paciente, não hospitalidade. As calçadas são péssimas. Muitas vezes acontece isso que o filme mostrou, o cadeirante andando no meio da rua”, complementou Helena. Ainda sobre as calçadas, Júlia Greve acrescentou: “A calçada é uma das coisas mais importantes para mudar a mentalidade do paulistano, para fazê-los sair de seus carros. Atualmente, as calçadas são muito ruins para que a gente ande.”

Para Linamara, é preciso “ações articuladas, não isoladas” para mudar a situação. Ela diz que é preciso ouvir as pessoas e que elas possam dialogar juntamente com as instituições envolvidas: o HC, o Metrô, a CET e a prefeitura.

Para que os órgãos públicos se atentem ao problema, a secretária propôs que se fizesse um estudo de quanto custa em reais para o Estado uma pessoa que se acidenta por quedas nas calçadas. Foi em caso semelhante que a prefeitura instaurou o rodízio veicular na capital: após pesquisa de Paulo Saldiva que mostrava como a poluição afetava não somente o indivíduo, mas a sociedade como um todo e quanto isso custava financeiramente.

Saldiva, por fim, comentou as cenas do filme que mostram um cadeirante, o paciente Jean Claude, e seu acompanhante, percorrendo o caminho ao HC. Para ele, as imagens mostram, de fato, a existência de uma ambiente hostil nas ruas e calçadas, contrastadas com a tranquilidade ao se entrar no hospital. “Da porta para dentro, melhora. O problema é chegar”, concluiu o professor.

Próximas exibições

No próximo sábado, 23 de setembro, o filme encerrará a programação da Virada da Mobilidade, numa exibição às 17h na sala 2 do Cinearte, no Conjunto Nacional. Para falar do filme e de seu tema central, Saldiva e Meli Malatesta, especialista em mobilidade a pé e por bicicleta, farão a exposição “Humanos e Urbanos: uma Caminhada na Fronteira entre Saúde e Doença nas Ruas de São Paulo”. Para participar, é necessário realizar inscrição prévia.

Imagem do post: Cena do documentário "Dis’mobilidade Urbana"

“Caminhabilidade e velhice”

Publicado originalmente em: Portal do Envelhecimento
Autora: Mônica Rodrigues Perracini
Data: 17/04/2017

Como podemos tornar nossas cidades mais caminháveis para as pessoas à medida que envelhecem? Qual é o papel de cada um de nós? Cidadãos e gestores públicos? Qual é o impacto da falta de boas condições para caminhabilidade nos espaços de vida dos idosos? 

Ir de um lugar ao outro, ou andar (caminhar) é uma atividade que aprendemos desde cedo e incorporamos rapidamente ao nosso repertório de movimentos. Afinal, é um marco no desenvolvimento quando uma criança dá seus primeiros passos. Depois, o andar se torna tão rotineiro que mal percebemos como o fazemos. Andamos para ir e vir. A etimologia da palavra andar (‘walk’ na língua inglesa) fala sobre ‘viajar sobre os pés’ e percorrer um caminho. As duas condições são um fato: para caminhar usamos nossos pés ao longo de um percurso ou caminho.

O conceito de caminhabilidade, do inglês walkability,surgiu para indicar a influência do ambiente construído no caminhar. Ou seja, o quanto a condição física de cada pessoa e sua relação com o entorno (ambiente) permite o seu deslocamento a pé com qualidade. Reflete em que medida o ambiente construído está adequado ou aceitável para caminhar. Isso depende tanto dos atributos físicos do ambiente, tais como as condições das calçadas, iluminação, segurança quanto da percepção de quem se desloca.

Os deslocamentos a pé se realizam no início e no final de todas as modalidades de transporte, assim como na conexão entre elas. Caminhar na cidade é vital pois, permite o acesso básico aos serviços e à atividades de lazer, de compras e de trabalho, dentre outras. Caminhar reconhecidamente traz benefícios para a saúde e uma melhor qualidade de vida e, é essencial para a manutenção da independência nas atividades fora de casa. Além disso, o caminhar fora de casa evita o isolamento social e proporciona uma sensação de liberdade.

Os principais fatores que afetam a decisão de deslocamento a pé dependem das características pessoais (condições físicas, aspectos psicológicos, culturais, socioeconômicos); características do deslocamento (distância e tempo, propósito, se é preciso carregar algum volume, do ambiente construído e social. A interação desses fatores influencia a tomada de decisão de sair de casa.

Caminhabilidade é um princípio fundamental das boas cidades para se viver, aquelas que são chamadas de amigáveis. Trata-se da qualidade do caminhar, da acessibilidade à cidade para qualquer pessoa, de qualquer idade, com qualquer tipo de dificuldade motora. Cidades caminháveis geram funcionalidade, conforto, conscientização e participação social e, por fim são fundamentais para inclusão das pessoas. Uma cidade não amigável é cruel, parcial, limitadora e excludente. De acordo com Glicksman e colaboradores (2013), caminhabilidade tem se tornado um importante conceito no campo da Gerontologia, especialmente nos programas que incentivam o envelhecimento ativo, para garantir que os idosos permaneçam ativos em suas casas e comunidades.

Dentro das perspectivas de construção de cidades inclusivas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define como Cidade Amiga do Idoso aquela que estimula o envelhecimento ativo, ao otimizar as oportunidades para a saúde, a participação e a segurança, com o objetivo de aumentar a qualidade de vida à medida que se envelhece e gerar participação econômica e social em ambiente seguro e acessível.

À medida que se envelhece, as pessoas enfrentam desafios específicos de mobilidade. Muitos irão desenvolver incapacidades que podem levar ao declínio das capacidades físicas, cognitivas, sensoriais e psicoafetivas que tornam mais difíceis a adaptação ao meio, reduzindo assim a mobilidade nos espaços de vida. Muitas pessoas idosas com mobilidade reduzida passam a depender das condições oferecidas pela infraestrutura urbana para que possam desempenhar atividades de forma segura.

Entre os grandes empecilhos para um caminhar seguro na rua estão as calçadas em mau estado. Em muitas regiões das cidades a calçada não existe, ou sua largura é insuficiente para acomodar a circulação com conforto, ou ainda se observa a ocorrência de irregularidade no piso, tais como buracos, tampos de inspeção de serviços elevados, declividades acentuadas, ausência de guias rebaixadas, degraus, muretas para contenção de água, falta de concordância de nível, postes e placas mal alocados, dentre outras.

Essas irregularidades são responsáveis por eventos de quedas de pedestres, sendo algumas com consequências graves. A calçada é via fundamental para caminhabilidade. Esta deve ser entendida não só como um corredor de passagem e deslocamento, mas como um espaço de permanência e de convivência adequado à mobilidade e aos sentidos humanos, já que estes fornecem a base biológica das atividades, do comportamento e da comunicação no espaço urbano. A calçada é também um espaço de convivência e de troca.

Um dos meios para discutir cidades amigáveis pode ser através da caminhabilidade. Questões como qualidade e disponibilidade de infraestrutura pedestre contida em uma área definida, presença de amenidades, como bancos e áreas cobertas que promovam a eficiência, o conforto e a segurança do deslocamento a pé são considerados na avaliação de ambientes que promovem a caminhabilidade. A facilidade de ter acesso a bens e serviços através do espaço público, a proximidade e interação entre pessoas e a percepção e sensação de segurança e liberdade são outros aspectos importantes relacionados a caminhabilidade nos espaços urbanos. É apontado como um conceito simples e ao mesmo tempo amplo, assim como é o ato de mover-se.

Os idosos de diferentes faixas etárias e com limitações motoras, visuais ou auditivas reagem de formas distintas frente às barreiras do ambiente. A forma como percebem o meio urbano é essencial na tomada de decisão de sair de casa. Um idoso que se sente inseguro não estabelece uma relação com a cidade, com isto, não tem oportunidade de participação e tende a ficar confinado dentro de casa. Em contrapartida, uma cidade convidativa e caminhável incentiva uma maior mobilidade em todas as pessoas e especialmente nas pessoas idosas.

É necessária a adaptação da sociedade para o desafio de pensar no futuro das grandes cidades diante do impacto social, econômico e cultural devido às mudanças no perfil etário da população brasileira. Para 2050, a projeção de pessoas com 60 anos ou mais é de 29% da população total brasileira.

Assim, é preciso compreender e aprofundar o conhecimento sobre mobilidade da pessoa idosa, destacando as associações entre mobilidade e caminhabilidade com os atributos do ambiente, e assim, desenvolver estratégias para atender e satisfazer as necessidades dessa população no contexto da mobilidade urbana.

Ver Bibliografia completa e Biografia da Autora.

Imagem do post: Sem faixa de pedestre na via, idoso precisou da ajuda do comerciante João que sinalizou para os veículos pararem. (Foto: Victor Chileno)

“Velocidade nas marginais. 10 coisas que aprendemos nos últimos dias”

Publicado originalmente em: Blog Caminhadas Urbanas
Autora: Mauro Calliari
Data: 03/11/2016

Comentário da Cidadeapé: A Cidadeapé está atenta e participativa na discussão sobre os limites de velocidades na cidade, que tem agora as marginais no centro das atenções. Conforme decidimos conjuntamente, não concordamos com o aumento de nem um km/h a mais em qualquer via da cidade, pois nossa prioridade é a defesa da vida!

marginal-mauro

A discussão sobre aumento de velocidade nas Marginais ganhou corpo nos últimos dias. Especialistas foram ouvidos. Engenheiros, ONGs, ativistas, médicos, gestores. Muita gente boa, com argumentos lógicos, munida de dados detalhados e bem interpretados foi chamada a participar de programas e debates*.

Parece que finalmente a cidade resolveu encampar um debate que não tinha sido aberto, apesar do pessoal da nova gestão não estar participando. De um modo geral, há uma convergência clara: mais velocidade igual a mais perigo para as pessoas, mais mortes, mais acidentes, etc.

Fiz um resumo dos aprendizados e dos argumentos que vi e ouvi. O assunto não se esgota, claro, mas dá para ver que há boas razões para tratar a questão da velocidade com muita calma e profundidade

1. A via expressa da Marginal não é tão expressa assim

Um dos poucos argumentos pró-aumento de velocidade é que as marginais são vias expressas e que comportariam velocidades mais altas. Aprendi que isso não é bem verdade.

Apenas uma parcela pequena dos motoristas (menos de 10%) usam a marginal como passagem entre duas estradas. Ou seja, a enorme maioria é de pessoas que entram ou saem da marginal para a cidade ou a partir da cidade. Na prática, isso significa que os carros estarão mudando de faixas, buscando acessos ou vindo de alças. Isso não configura uma via expressa.

Daria para andar mais rápido em alguns horários em que a via não está cheia? Em teoria, sim, até 80 km/h no máximo, em alguns raros horários muito vazios. Mas não temos essa tecnologia de mudar velocidades com o horário e, para completar, há uma questão técnica: a via tem um declive grande nas faixas das extremidades para facilitar o escoamento de água. Isso aparentemente é incompatível com velocidades mais altas.

Há ainda outra questão ligada à segurança da via expressa, que tem menos a ver com engenharia de tráfego e mais com prevenção: há vários pontos das marginais em que pessoas se arriscam no trânsito, vendendo água, salgadinhos para os carros que param nos previsíveis congestionamentos. Não há argumentos que justifiquem que pessoas arrisquem suas vidas na marginal. Com qualquer velocidade, isso é perigoso demais e deve ser coibido. Além disso, quando há panes ou mesmo acidentes com veículos, motoristas e ocupantes tornam se pedestres sujeitos a atropelamentos.

O maior argumento para manter a velocidade como está talvez seja o mais contra-intuitivo para quem gostaria de ir mais rápido: a partir de uma determinada velocidade, as distâncias de segurança aumentam muito, o que faz com que qualquer freada brusca cause um efeito dominó que às vezes gera quilômetros e quilômetros de fila.

Ou seja, surpreendentemente para alguns (para mim, por exemplo), a velocidade média do trânsito melhora quando a velocidade máxima não ultrapassa os cinqüenta por hora. (veja aqui um link bem interessante que simula os congestionamentos a partir da velocidade máxima )

2. A via local das marginais é a que apresenta mais riscos aos pedestres

 Quando dirigimos nas marginais, dificilmente nos damos conta de que tanta gente possa andar a pé naqueles lugares aparentemente inóspitos. Mas, os debates das últimas duas semanas trouxeram a confirmação daquilo que qualquer um que caminhe pela cidade já sabe: as calçadas da marginal Pinheiros e da Marginal Tietê são locais de movimento intenso … de pedestres.

Eles andam paralelamente ao trânsito e precisam cruzar mais de 200 ruas que encontram perpendicularmente as duas marginais. Os carros que viram à direita nesses pontos têm que reduzir a velocidade e esperar pelo pedestre para fazer a conversão. A 50 km/hora, é possível fazer isso sem tomar uma batida na traseira. Se estiver andando em velocidades mais altas, na prática, nenhum motorista vai se arriscar a dar a vez ao pedestre. Portanto, aumentar a velocidade na via local seria uma ação contra a vida que colocaria os pedestres num risco maior do que o que já vivem hoje.

Ah, alguém poderia perguntar, mas por que há pedestres andando na Marginal?

A resposta é simples; ali, há grandes pontos de concentração de pessoas – shopping centers, lojas, concessionárias, escritórios, muitas vezes distantes das estações de transporte. O Shopping Villa Lobos, por exemplo. Ele atrai milhares de clientes e funcionários por dia. Mas obriga quem usa o transporte público a andar aproximadamente um quilômetro e meio pelas marginais, seja a partir da Estação Jaguaré, seja a partir da Estação Cidade Universitária, ouvindo e cheirando o trânsito e tendo que cruzar as ruas perpendiculares. Deveríamos estar discutindo como aumentar e melhorar essas calçadas.

3. O número de mortes no transito vem caindo consistentemente, mas nossos índices ainda são absurdos frente a outras cidades

O debate dos últimos dias trouxe uma conversa interessante. Houve quem dissesse que os acidentes na cidade estão caindo por causa da redução do número de carros nas ruas e não por conta da redução da velocidade. O que eu depreendi do que ouvi é que ainda há alguns cálculos estatísticos que podem ser feitos para depurar uma variável da outra, mas, existem cidades brasileiras que não apresentam queda no número de mortes, apesar de também estarem sujeitas à possível queda do número de carros. De qualquer modo, mesmo com a redução, o número de pessoas que morrem em acidentes em São Paulo ainda é absurdo: só de pedestres, foram 408 mortes no ano passado, mais de três vezes o número de Nova York.

4. A cidade não está lidando bem com motocicletas

As motos estão envolvidas em um número desproporcionalmente alto de acidentes, incluindo atropelamentos. Quem dirige uma motocicleta na cidade tem mais chance de morrer, ou de matar, do que qualquer outra pessoa. Basta olhar para ver isso na prática: andar entre os carros, ziguezague no trânsito, furar sinais vermelhos parecem ser hábitos normais entre quem se vê em cima de uma moto. Aparentemente, alguns radares não conseguem captar essas contravenções, que ficam impunes até por conta de um número grande de motoristas em condições irregulares. Há muito o que fazer aqui e o assunto parece ter ficado um pouco de fora dos debates, se não fosse pelas colocações do diretor do Instituto Movimento de São Paulo, Eduardo Vasconcellos. O motociclista é uma pessoa que tem família, do mesmo jeito que todo mundo e não há razão para essa categoria ter ficado tão à margem das conversas.

5. Pedestres começaram a se organizar também

Mesmo representando quase um terço dos deslocamentos diários pela cidade, os pedestres sempre tiveram pouca representatividade na discussão. No entanto, recentemente, a exemplo dos cicloativistas, o movimento organizado de pedestres também está ganhando expressão. Uma pesquisa chamada “Como anda”, dá conta de que já há mais de 130 organizações que tratam da questão de segurança e conforto para os pedestres, a ANTP, e o Cidadeapé.

6. Bons diagnósticos precisam de boas informações

Um dos pontos positivos dessas últimas conversas é que as pessoas se mobilizaram para trabalhar e editar os dados disponíveis. Ficou claro que órgãos de trânsito precisam melhorar a sua capacidade de gestão da informação. Os dados existem, mas há fontes diferentes e metodologias diferentes. É preciso ir fundo nelas para poder estabelecer dados confiáveis.

Hoje, o que se pode dizer é que conhecemos pouco um pouco sobre acidentes com mortes, inclusive os locais onde aconteceram. Não parece haver muito “data mining” no trabalho dos dados para outros acidentes, principalmente quando envolvem pedestres. Apenas como exemplo, bons cálculos permitem descobrir coisas surpreendentes, como a possibilidade de que o número de carros circulando pela cidade seja muito menor do que os órgãos de trânsito sugerem.

7. Aprendemos que importantes cidades de países desenvolvidos praticam velocidades até abaixo das nossas. E multam quem não cumpre.

As referências estão por toda a parte. Na Europa, vários cidades importantes, como Londres, Paris, Copenhagen, estão fazendo ações concretas para diminuir o número de mortes. E, várias delas, existe a VISION ZERO, que é um pacto para que o número de mortes não apenas baixe, mas que zere.

Nos Estados Unidos, Nova York também aderiu a essa visão. Lá, a velocidade máxima “padrão” em 2012 tinha sido baixada par 48 km/hora (30 milhas/hora). O prefeito atual, Bill de Blasio reduziu ainda mais, para 40 km/hora (25 milhas/hora). Também passaram a ser comuns ações de controle, radares e, principalmente, ações de “traffic calming”, ou “acalmamento de tráfego”, que estão sendo implantadas em toda parte.

8. Aprendemos que há muitas pessoas bem informadas que deveriam estar sendo ouvidas pelos novos gestores.

Fiquei agradavelmente impressionado com a qualidade dos debates e aprofundidade de vários argumentos. Associações, jornalistas, pesquisadores têm informações que validam os argumentos pró-redução da velocidade. Lideranças respeitáveis, como o diretor da ANTP, Luis Carlos Mantovani Nespoli, fizeram questão de ressaltar que o corpo técnico da CET é muito bem preparado. Isso me fez pensar em como esse corpo técnico será ouvido e como será sua participação na nova gestão. É interessante pensar que há um quadro técnico que não muda com novas gestões e que pode servir como base para que novos estilos de liderança possam trocar idéias e afinar o discurso.

9. Há uma discussão muito importante que ainda não começou – a segurança do pedestre no interior da cidade

A questão das marginais não pode esconder outra, tão importante quanto, ou até mais, a segurança nas ruas e avenidas da cidade. Nelas, os limites de velocidade são enores. Mas ninguém pratica, nem há fiscalização adequada. Em ruas residenciais e locais, por exemplo, o limite é 30 km/hora. Há poucas placas indicativas de velocidade e pouquíssimas iniciativas para fazer as pessoas trafegarem nessa velocidade.

Em tempos de Waze, muitas vezes os motoristas usam essas ruas como atalhos para seus caminhos e não podem resistir à visão de uma via desimpedida e aceleram. Ali, há crianças que andam, há pessoas que precisam atravessar, há gente vivendo nas casas, que não precisa ficar ouvindo buzinas, aceleradas e freadas.

10. Os motoristas vão se acostumar velocidades mais baixas

No início, parecia o fim do mundo manter uma tonelada de ferro que pode acelerar a 180, 200 km/hora dentro dos limites de 50. Mas a gente se acostuma.

Várias pessoas lembraram como os limites de velocidade foram caindo nas últimas décadas. Pessoalmente, lembro de ver os carros andando a 100, 120 km/hora e costurando nas marginais. A mesma coisa acontece nas estradas. É estranho olhar uma estrada vazia e andar a oitenta por hora. Mas se os estudos foram bem feitos e se os limites parecem sensatos também nos acostumamos. Lembro também quando ninguém usava cinto de segurança. Passamos a usar, eles salvam vidas e hoje não se fala mais nisso.

São coisas indolores, que vão sendo incorporadas à medida que nos tornamos uma sociedade melhor, em que a satisfação de uma pessoa tem menos a ver com a velocidade que ele anda e mais com os encontros que ela pode ter pela cidade.

*Links úteis.

Audiência pública na Câmara Municipal sobre o aumento de velocidades https://www.facebook.com/josepoliceneto

ABNT – Associação Nacional de Transportes Públicos

Painel da Aberje sobre mobilidade

Associação dos pedestres

Notícias sobre a queda do número de mortes no trânsito

Imagem do post: Mauro Calliari (Facebook)

“Tombos na calçada são acidentes de trânsito não computados”

Publicado originalmente emPlaneta Sustentável
Autora: Natália Garcia
Data: 22/04/2013

Comentário da Cidadeapé: O artigo é de 2013. Mas como andamos falando desse assunto no recente Seminário “Caminhos da Cidade”, resolvemos retomar o assunto. Tombos na calçada são acidentes de trânsito e questão de saúde pública. Se a mobilidade a pé fosse mais valorizada, haveria menos desses nas cidades, e o custo social seria bem reduzido.

Essa é minha querida amiga Biba Russo, uma atleta que, aos 62 anos, corre muito mais do que eu, aos 29. Tem uma coleção de medalhas impressionante, resultado de sua disciplina inabalável. Faça chuva ou faça sol, Biba levanta ainda antes de amanhecer para correr, nadar ou fazer academia. Só que, há duas semanas, ela tomou um tombo em uma de suas corridas. Um tombo feio, com fratura exposta, que precisou de duas cirurgias reparadoras. Felizmente ela está se recuperando e logo logo estará de volta, em velocidade, às corridas no asfalto.

Biba não se lembra muito bem como caiu, estava conversando, distraída. Acredita que tenha sido um buraco no meio do caminho que a fez pisar em falso. “Um tombo, uma fatalidade”, pensei eu. Mas não, “na verdade, ela sofreu um acidente de trânsito”, disse-me o consultor de mobilidade Philip Anthony Gold, que foi ombudsman da CET até o final do ano passado. Gold estuda, planeja e faz consultoria para projetos de mobilidade urbana há mais de 40 anos e um dos seus temas centrais são os pedestres. “O que me fez mergulhar nesse assunto nem foram os deslocamentos em si, mas os acidentes sofridos por pedestres”, diz ele. Qualquer pessoa tem uma história para contar sobre um tombo de algum conhecido na rua ou na calçada. “Esses tombos, muitas vezes gravíssimos, deveriam entrar nas estatísticas de acidentes de trânsito, mas não entram”, diz Gold.

O consultor de mobilidade acredita que quantificar acidentes sofridos por pedestres por conta da infraestrutura das calçadas e ruas é um ponto que poderia reforçar a argumentação da necessidade de investir em boa pavimentação e acessibilidade para os pedestres. “Isso fica especialmente difícil no Brasil, onde a responsabilidade pela calçada é do munícipe, não do poder público”, ressalta Gold. “Mas mesmo o BIRD [Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento] e outras entidades de financiamento de projetos de mobilidade, acabam não exigindo a inclusão integral do andar a pé, e sua infraestrutura necessária, nos planos e projetos de desenvolvimento que financiam.”, completa.

A prefeitura de São Paulo até tem uma cartilha de diretrizes a serem seguidas na pavimentação das calçadas, mas muitas vezes acaba sendo mais barato pagar a multa por uma calçada irregular do que reformá-la. Isso quando a fiscalização é feita e a multa aplicada. A regra mesmo – e quem anda a pé pela cidade sabe disso – são as calçadas niveladas para a entrada de carros nas garagens, criando degraus difíceis de percorrer, e muitas vezes mal acabadas, esburacadas. “Calçada é a via de transporte para os pedestres, se os deslocamentos feitos a pé fossem realmente levados a sério, essa pavimentação seria de responsabilidade do poder público”, argumenta Gold.

Para tentar mostrar a importância de quantificar as quedas de pedestres e categorizá-las como acidentes de trânsito, Gold tentou fazer um cálculo estimado de quanto elas custam à cidade de São Paulo. Para isso, ele um estudo em parceria com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2003 chamado “Impactos Sociais e Econômicos dos Acidentes de Trânsito nas Aglomerações Urbanas Brasileiras”. O estudo aponta que:

– Entre 2002 e 2003, 9 a cada 1000 moradores de aglomerações urbanas brasileiras sofreram quedas como pedestres.

– O custo médio de resgate e tratamento de cada um deles está estimado em R$2.656,00.

Como a aglomeração metropolitana de São Paulo possuia 19 milhões de habitantes em 2003, a estimativa do IPEA é de que 171.000 pessoas tenham sofrido quedas como pedestres naquele ano. E o custo total do resgate e tratamento nesses 12 meses ficou em aproximadamente R$ 500 milhões. Para completar o cálculo da estimativa dos custos sociais das quedas de pedestres, segundo Gold, é preciso aplicar um fator de multiplicação de 4,52, para acrescentar perda de produção e reabilitação.

A conclusão é que o custo social de acidentes sofridos por  pedestres em calçadas é de aproximadamente R$ 2 bilhões. O mais impressionante é que o custo social dos acidentes de trânsito (considerados como tal porque que envolvem veículos motorizados e já com o fator de multiplicação dos 4,52) está estimados em R$ 1,5 bilhão no mesmo estudo. Ou seja, a cidade de São Paulo paga mais caro pelos acidentes sofridos por pedestres nas calçadas do que por acidentes que envolvam veículos motorizados.

Não levar pedestres a sério como parte da mobilidade de uma cidade além de ser prejudicial para uma parte importante das pessoas que se deslocam todo dia (a todas, a rigor, pois até um motorista se torna pedestre no momento em que estaciona o veículo) custa caro para a cidade. “Ainda assim, queda de pedestres não é um assunto de trânsito”, lamenta Gold. A Organização Mundial da Saúde, segundo ele, possui estatísticas de acidentes divididas em categorias e há uma delas chamada “quedas”, grupo que contempla tanto o senhor de idade que escorrega em sua cozinha quanto o pedestre que toma um tropeção no buraco da calçada. “Não há um código burocrático para diferenciar os dois, e ficamos sem saber as estatísticas mundiais de quedas de pedestres porque elas não são contempladas pelos que estudam o trânsito nem a saúde”, explica Gold. Os pedestres estão no limbo. E parece que aí devem continuar por um bom tempo.

O Pedestrian Safety, guia de segurança para pedestres que será lançado na primeira semana de maio (mas que já tem uma versão digital que pode ser conferida aqui) define logo em suas primeiras páginas os acidentes de pedestres como colisões envolvendo pelo menos um veículo. Financiado pela Who (World Helth Organization) e Fia Foundation, ele continua pensando na segurança de pedestres do ponto de vista dos carros em circulação. E é ele que deve nortear os olhares dos planejadores de mobilidade pelos próximos anos.

Enquanto isso, minha amiga Biba continua pertencendo a uma categoria-limbo de acidentes chamada “quedas”. Tudo bem, ela estava fazendo uma atividade física, não propriamente se locomovendo. Mas o mesmo buraco que a fez cair pode ter causado (e talvez tenha mesmo) quedas de outros pedestres, correndo para pegar o ônibus ou simplesmente caminhando distraídos. Caminhar a pé é parte importante dos deslocamentos feitos em São Paulo e as calçadas são a via dos pedestres. Pela lógica, quedas de pedestres são acidentes de trânsito. Aplicar essa lógica é passo necessário para colocar as pessoas no centro da gestão da cidade.