Precisamos pensar a rede de semáforos para as pessoas

Modernizar a rede semafórica da cidade pode beneficiar muito a mobilidade urbana, desde que todos os modos de transporte sejam considerados na implantação do sistema

A Prefeitura lançou o Procedimento Preliminar de Manifestação de Interesse (PPMI) para a estruturação de parceria com a iniciativa privada para modernizar a rede semafórica da cidade. Vale destacar que esta estrutura de rede contempla tanto os semáforos para veículos quanto os voltados para pedestres e ciclistas.

A principal promessa que motiva a privatização do sistema é a possibilidade de usar novas tecnologias para melhorar a gestão do tráfego – como o uso de semáforos “inteligentes”, que levam em conta a demanda de veículos e ajustam seus tempos de acordo com ela. No entanto, o edital é demasiadamente vago, e não explicita o que entende por “gestão do tráfego”, apenas pede “indicação das características da rede semafórica ideal para o Município de São Paulo, incluindo estimativas de nível de custos de manutenção, nível de falhas, ganhos de eficiência”. Não fica claro a que se refere essa eficiência, porém nossa experiência nos diz que se trata predominantemente do fluxo de veículos, e sua fluidez.

Esperamos estar errados. O ideal seria que o edital especificasse os diversos elementos do sistema, explicitando o que é necessário para melhorar a qualidade da mobilidade urbana como um todo, envolvendo todos os modos de transporte – e como os semáforos podem contribuir para isso.

A Cidadeapé buscou, no edital do PPMI, exigências específicas relacionadas a potenciais aprimoramentos do sistema que pudessem melhorar a circulação de pedestres e aumentar sua segurança – como minimizar o tempo de espera e aumentar o de travessia para os deslocamentos a pé. Infelizmente não encontramos nada, apesar de o pedestre ser elemento fundamental da mobilidade urbana, e  andar a pé é forma mais praticada de locomoção. Há menções à melhoria da segurança e a acessibilidade na apresentação do projeto – mas o termo de referência não indica como chegar a isso.

Histórica e atualmente, os veículos motorizados tiveram prioridade na cidade de São Paulo e no planejamento do trânsito. Somente os veículos são considerados para a decisão sobre os tempos semafóricos, enquanto que o fluxo de pedestres é desconhecido (não são feitas contagens ou pesquisas), e portanto não é incluído nas tomadas de decisão.

Esta poderia ser uma oportunidade para mudar isso. Assim, indicamos aqui os principais problemas dos pedestres no que concerne aos semáforos – e o que seria necessário fazer para lidar com eles.

 

Problemas dos pedestres nas travessias semaforizadas

  1. Perda na prioridade na conversão com foco para pedestre – Na conversão, a preferência é do pedestre (CTB, Art. 36) mas, paradoxalmente, o foco dedicado ao pedestre tira essa preferência. Um ciclo de 3 estágios significa que o sinal abre para um fluxo de veículos, depois abre para outro fluxo de veículos, e só depois abre para os pedestres. A justificativa da segurança na verdade traz sérios prejuízos para os pedestres, pois gera grande tempo de espera e pouco tempo de travessia. O ciclo de 3 estágios é, ao contrário do que se pensa, muito mais inseguro, induzindo as pessoas a atravessarem no vermelho (67% das mortes nos cruzamentos). Há situações ainda piores, em que os pedestres sequer conseguem atravessar num sentido, sem esperar 2 longuíssimas sequências. Muitos cruzamentos deixam de ter travessias nas continuidades das calçadas apenas para assegurar todo o tempo aos veículos.
  2. Cálculo do tempo de travessia – Para cálculo do tempo de travessia  adota-se a canhestra técnica de utilizar o “tempo médio” de travessia da via por uma única pessoa. Os padrões utilizados para fixação desse “tempo médio”, no entanto, nem mesmo foram calculados por um órgão técnico brasileiro. São utilizados índices aferidos para populações de outros países (com diferente padrão de altura, faixa etária média, número de pessoas com deficiência na população, etc). Só como um exemplo, umas das poucas pesquisas acadêmicas sobre travessias indica que “97,8% dos idosos da cidade de São Paulo não conseguem caminhar a 4,3 km/h, velocidade exigida pelo padrão apresentado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-SP) para os semáforos da cidade”. Além disso, se em uma rua há um fluxo muito grande de pedestres e, enquanto aguardam o sinal abrir, eles formam “pelotões” para atravessar, o cálculo do tempo semafórico apenas leva em conta o tempo necessário para a primeira fileira atravessar.
  3. Botoeira – O botão que faz o pedestre “pedir licença” para atravessar. Não há padronização do seu funcionamento: ou não interferem nos ciclos semafóricos ou demoram para dar o tempo aos pedestres ou o botão simplesmente não funciona.
  4. Vermelho piscante – As atuais normas do Manual de Sinalização Semafórica do Denatran impuseram uma prática que já tem se mostrada totalmente inapropriada ao definir poucos segundos de verde e o restante do tempo de travessia em vermelho piscante, de forma a reduzir ainda mais o tempo de travessia. As pessoas se sentem pressionadas e frustradas ao atravessar, e precisam correr pela rua – ao invés de simplesmente atravessar com dignidade e conforto.

O que deveria ser feito, obedecendo ao preconizado no CTB (Lei Federal 9.503/1997), na Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal 12.587/2012) e no PlanMob de São Paulo (Decreto Municipal 56.834/2016), seria priorizar o pedestre. Para isso é preciso:

  1.  Passar a contabilizar o número de pessoas usando as vias,
  2.  Considerar o fluxo de pessoas a pé nas travessias,
  3. Conhecer melhor os tempos necessários para atravessar e
  4. Entender as necessidades de todos os pedestres, não apenas da “média”. Pessoas com dificuldade de locomoção, pessoas empurrando carrinhos de bebê, carregando compras, puxando malas, dando as mãos a crianças, de muleta, com o pé machucado, etc.

Todos devem ser capazes de atravessar as ruas com segurança, tranquilidade e dignidade.

 

Sugestões da Cidadeapé

  1. O futuro sistema semafórico todo deve ser de 2 estágios, com pedestres atravessando com prioridade e tendo o mesmo tempo (espera e travessia) que os veículos na mesma direção, respeitando o pedestre na conversão (esta era a prática até início dos anos 2000, e que ainda se observa em muitos semáforos da cidade e também em New York – vide Boletim Técnico 52 da CET).
  2. A modernização da rede semafórica deve considerar rever os cálculos do tempo de travessia considerando as diferentes demandas dos fluxos a pé – em locais com maior fluxo, o tempo deve ser maior.
  3. O futuro sistema semafórico deve prever sinalização visual e sonora automática (sem botões) em todos os semáforos (a tecnologia está disponível), não só tornando a cidade com acessibilidade universal, mas também mais segura para os pedestres em suas travessias.
  4. Maior proteção ao pedestre agregado aos novos sistemas sistemas semafóricos, com travessias nas continuação de todas as calçadas do cruzamento, com boa iluminação das faixas de travessia com configuração longitudinal, sinalização vertical adequada e câmeras múltiplas, cobrindo inclusive os pontos de ônibus.
  5. Durante a instalação do novo sistema, planejar a instalação e adequação dos postes: verificar se não há postes em excesso nas esquinas e se seu posicionamento obedece à norma e não atrapalha o percurso de quem utiliza as faixas de travessia. Comumente verificamos postes de sinalização da CET extremamente mal posicionados. Há vários locais em que o foco de pedestres está localizado no centro das rampas de acessibilidade, causando transtorno para sua utilização pelas pessoas com deficiência. Há outros locais em que chegamos a contar com até 4 postes da CET na esquina, atrapalhando o fluxo de pessoas. Observamos que em vários casos um único poste cumpriria a mesma função, desde que haja projeto e planejamento adequados.
  6. Os novos semáforos devem ter sincronização com o sistema de transporte público coletivo (aproximação com controle de velocidade e aceleração), com substancial ganho no tempo das viagens.

 

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Sobre o edital para a rede semafórica

Mais sobre semáforos e travessias no site da Cidadeapé

 

“Em São Paulo, 97,8% dos idosos não conseguem atravessar a rua no tempo dos semáforos”

Publicado originalmente em: Agência Fapesp
Autora: Maria Fernanda Ziegler
Data: 03/05/2016

Poucos metros separam uma calçada da outra. Mas, quando o sinal verde autoriza a travessia de pedestres, cruzar a rua pode se tornar uma façanha, principalmente para as pessoas com mais de 60 anos: o luminoso com o bonequinho vermelho começa a piscar antes que eles cheguem com segurança ao outro lado da calçada.

Um estudo feito na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) constatou que 97,8% dos idosos da cidade de São Paulo não conseguem caminhar a 4,3 km/h, velocidade exigida pelo padrão apresentado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-SP) para os semáforos da cidade. Na média, a velocidade alcançada pelos voluntários com mais de 60 anos que participaram do estudo foi bem menor que o exigido: apenas 2,7 km/h.

Para medir a velocidade da marcha dos 1.191 idosos que participaram do estudo foi necessária a infraestrutura do Estudo SABE – Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento, pesquisa longitudinal de múltiplas coortes sobre as condições de vida e saúde dos idosos do município de São Paulo.

Esse estudo multicêntrico teve início em 2000, quando, por iniciativa da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), foram pesquisadas pessoas de 60 anos ou mais de sete grandes cidades da América Latina e do Caribe, entre elas São Paulo. Com apoio da FAPESP, o estudo foi reeditado em São Paulo em 2006 e 2010 e em 2016 teve sua quarta edição.

“A velocidade de marcha exigida para atravessar as ruas da cidade não condiz com a população idosa e não podemos desconsiderar o aumento da população idosa no município de São Paulo e no Brasil inteiro”, disse Etienne Duim, autora de artigo com resultados do estudo publicado no Journal of Transport & Health – os outros autores são José Leopoldo Ferreira Antunes e Maria Lucia Lebrão (falecida em julho de 2016).

De acordo com dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), em 2016, o percentual de idosos na cidade de São Paulo era de 12,74%.

“O que constatamos com o estudo é que a cidade não é regulada para o idoso, mas para um indivíduo adulto que, na maioria dos casos, anda entre 4 e 6 km/h sem maiores problemas. Isso tem o efeito de fazer com que o idoso fique cada vez mais confinado em casa”, disse Antunes, professor titular da FSP e orientador do estudo.

A pesquisa tomou como base dados da CET-SP (de agosto de 2016) que regula o tempo dos semáforos a partir de um cálculo que considera a velocidade média para o pedestre como 4,3 km/h. O cálculo é feito para a travessia enquanto o sinal de pedestre está verde. O estudo não considerou o tempo do sinal vermelho piscante. Segundo a CET, não houve alteração no tempo dos semáforos após o período de realização da pesquisa. A análise bibliográfica sobre o tema, feita pelos pesquisadores, apontou que cidades têm reduzido a velocidade média de percurso para pedestres, como Valência e Barcelona, na Espanha, com os seus atuais 3,2 km/h.

Segundo Duim, um estudo realizado na Inglaterra teve resultados muito parecidos com os de São Paulo. “O estudo inglês inclusive teve peso na regulamentação do país, que aumentou o tempo dos semáforos”, disse.

Os dois estudos concluem que, para a população idosa, a caminhada tem importante relação com a saúde e com a interação social e que fatores que atrapalhem a movimentação desse público – como a dificuldade de atravessar ruas – podem indicar perda de autonomia e até mesmo de qualidade de vida do idoso.

Sem pressa

Duim sugere para a capital paulista mudanças parecidas com as adotadas na Inglaterra e na Espanha. Isso garantiria a autonomia e mobilidade da população idosa e, principalmente, a redução de riscos de atropelamentos.

“Aumentar 5 segundos o tempo para cada semáforo pode trazer um impacto no trânsito? Pode. Mas, pelo que vimos nos estudos realizados em outros países, essa mudança é diluída também com a adoção de outras medidas, como alteração de velocidade do trânsito e incentivo ao uso de transporte público, por exemplo”, disse.

Duim indica como alternativa interessante para São Paulo a proposta adotada em Curitiba, onde foram implantados alguns semáforos inteligentes: o idoso insere um cartão num dispositivo eletrônico para determinar que precisará de mais tempo para atravessar a rua.

“O mesmo também vale para outras pessoas com dificuldade de locomoção, como cadeirantes, grávidas e pessoas com crianças pequenas, por exemplo. É uma solução que não impacta tanto o trânsito e cria um processo interessante de inclusão social”, disse.

Mais sobre a pesquisa:

Artigo em português: Tempo de travessia para pedestre e a velocidade de marcha de pessoas idosas

Artigo em inglês: Walking speed of older people and pedestrian crossing time

Reportagem SBT: Tempo de alguns semáforos é menor que velocidade de caminhada dos pedestres

Entrevista CBN: Tempo de travessia dos semáforos de SP é inferior à velocidade média dos pedestres

Imagem do post: Sem faixa de pedestre na via, idoso precisou da ajuda do comerciante João que sinalizou para os veículos pararem. (Foto: Victor Chileno)

 

 

 

 

FAROL MIOJO 2016

Quem anda pela cidade sabe: tem lugar em que o tempo de espera para atravessar uma rua é tão longo que daria tempo de fazer um miojo!!

Sensíveis a essa questão, voluntários da Cidadeapé realizam a ação “Farol-Miojo”, uma sátira-séria para evidenciar e colocar em pauta que é inadmissível que as pessoas esperem tanto tempo para atravessar que dá tempo até de cozinhar, e comer (!), um macarrão instantâneo.

No dia 25/03/16, fomos junto com o amigo e defensor dos pedestres, o Super-Ando, testar um dos inúmeros Faróis Miojo da cidade.

Na esquina da Rebouças com a Oscar Freire, Zona Oeste, o grande problema é chegar do ponto A ao ponto B: atravessar a Rebouças pelo lado par da Oscar Freire. Ou, ainda pior, descer do ônibus no ponto C e tentar chegar no ponto A. Conforme esquema abaixo.

Farol Miojo 02

Cruzamento da Av. Rebouças com a Rua Oscar Freire. Opções de travessia para pedestres. Observar que entre os pontos A e C não há faixa de pedestre.

Ora, parece simples. De A a C é uma simples travessia de 10 metros. No entanto, ali não tem faixa de pedestres. Então, quais as opções?

  • Realizar 5 travessias – 1, 2, 3, 4, e 5. O percurso é aumentado 6 vezes (60 metros) e o tempo de deslocamento é de 4 minutos – considerando todos os ciclos semafóricos.
  • Realizar 1 travessia – 6. O percurso é aumentado 18 vezes (180 metros) e o tempo de deslocamento é de mais de 3 minutos – considerando a espera no semáforo.
  • Realizar a travessia entre C e A, onde não há sinalização e os motoristas não respeitam a prioridade do pedestre na conversão (Art. 38 do CTB), esperando uma brecha no trânsito de veículos.

No vídeo abaixo testamos e cronometramos o trajeto de A até B (25 metros em linha reta) pelos dois caminhos projetados para os pedestres.

O Thomas atravessou as 4 faixas: 5, 4, 3 e 2.

  • Tempo total: 2’20” minutos
  • Trajeto total: 50 metros
  • Obs.: ao realizar a travessia 3 (com o verde para pedestre), quase foi atropelado por um carro de polícia que fez a conversão proibida da Oscar Freire para a Rebouças. Ver minuto 2’40’’do vídeo, e observe a sinalização:  Placas de Transito do Brasil

A Meli foi pela travessia 6.

    • Tempo total: 4 minutos
    • Trajeto total 200 metros.
    • Obs.: susto com carro entrando no estacionamento da churrascaria, trafegando sobre a calçada.

Conclusão

O longo tempo de espera para os pedestres atravessarem as ruas e avenidas das cidades é uma das principais causas de atropelamentos. Isso porque leva-se muito pouco em consideração as necessidades das pessoas na programação dos tempos semafóricos e no desenho da sinalização e da geometria das vias. O pedestre espera demais e quando é a “sua vez”, transforma-se praticamente em um atleta para completar sua travessia em tempo hábil. Ou tem que andar muito mais do que precisa, só para que o fluxo veicular não seja prejudicado, como vimos aqui: custava ter uma faixa de travessia entre C e A?

Ou simplesmente desiste de esperar, e vai pelo caminho mais curto, mais natural, mais eficiente, como deveria ter sido projetado.

E você? Também conhece um Farol Miojo em São Paulo? Conte para a gente.

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“Respeitar pedestres é caminho para cidades saudáveis e educadoras”

Publicado originalmente emPortal Aprendiz
Autor: Danilo Mekari
Data: 17/05/2016

Aproximadamente um em cada três deslocamentos em metrópoles como São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte é feito a pé. Em outras cidades do Brasil, essa proporção é ainda maior – tal número, porém, parece exercer pouco efeito sobre as políticas públicas de mobilidade urbana no país, em sua maioria ainda estagnadas no conceito rodoviário e de priorização do transporte individual e motorizado.

Outros dados engrossam essa realidade: na década entre 2001 e 2011, enquanto a população brasileira aumentou 12,2%, a quantidade de veículos automotores no Brasil cresceu 138,6%, segundo relatório doObservatório das Metrópoles. Em 2012, circulavam pelas vias do país cerca de 50,2 milhões de automóveis e 19,9 milhões de motos, de acordo com o Denatran.

Com as ruas dominadas por veículos motorizados, qual espaço que sobra para o pedestre – aquele que não consome energia fóssil, que deixa o sedentarismo de lado e, ao decidir por fazer seu trajeto a pé, seja até o ponto de ônibus, à estação de metrô ou todo o caminho, circula pelo ambiente urbano espalhando vida pela cidade? Em muitos casos, somente calçadas esburacadas e perigosas.

Estimular os pedestres a caminharem pelo espaço urbano é uma maneira de construir cidades sustentáveis, resilientes e educadoras.

“Uma cidade caminhável é uma cidade saudável, uma cidade melhor”, aponta Joana Canedo, da Associação Cidadeapé. “A mobilidade a pé deve ser considerada um sistema de transporte, pensando a sua infraestrutura de forma sistêmica: calçadas, acessibilidade, iluminação, faixas e semáforos de pedestres, arborização, bancos, lixeira, redução da velocidade dos veículos motorizados.”

Além de tais medidas, também é necessário, na opinião de Joana, criar uma rede de deslocamento contínua e linear, com travessias conectadas e articulação com outros modais, favorecendo a convivência entre diferentes modos de transporte. “Hoje, a calçada é pensada como assessório, não como meio de transporte”, reclama.

No ano de 2015, 419 pedestres morreram em acidentes de trânsito em São Paulo. “A mortalidade é enorme. No mesmo ano, as quedas nas calçadas geraram mil atendimentos apenas no Hospital das Clínicas. Porém, elas não são contabilizadas como acidentes de trânsito.”

Terceira idade a pé

A pesquisadora Etienne Duim apresentou sua investigação sobre as dificuldades que idosos encontram para atravessar as ruas em segurança. Em 2014, essa faixa da população perdeu 203 pessoas em acidentes de trânsito em São Paulo, sendo que 88% desse total eram pedestres.

“Será que os idosos têm tempo o suficiente para atravessar as ruas com segurança?”, questiona. O tempo para a travessia considera a largura da via e o posicionamento do pedestre, e no Brasil este número fica entre 1,2 m/s (metros por segundo) e 1,5 m/s – em cidades como Barcelona, na Espanha, basta andar a 0,9 m/s para se conseguir atravessar ruas.

Estimular os pedestres a caminharem pelo espaço urbano é uma maneira de construir cidades sustentáveis, resilientes e educadoras.

“Com o envelhecimento, ocorre um decréscimo na velocidade de marcha, e aumenta a dificuldade para atravessar ruas e avenidas, mesmo com faixa”, observa a pesquisadora, que faz parte do grupo de estudos SABE (Saúde, Bem Estar e Envelhecimento). Em pesquisa com 1191 idosos realizada em 2010, foi revelado que apenas 4,3% deles conseguiam atingir a média de 1,1 m/s em sua caminhada, ao passo que outros 30% se encaixam no tempo de 0,9 m/s.

“Em São Paulo, claramente o tempo de travessia não é suficiente. Curitiba está testando um sistema que aumenta tempo de semáforo para pedestres com mobilidade reduzida, e em Lima existem experiências com temporizadores para pedestres nos semáforos”, afirma.

A pé para a escola

Pesquisa de 2009 mostra que, entre mais de 2.500 crianças e adolescentes de 51 cidades paulistas, 71% vão para a escola a pé. A pesquisadora Sandra Costa de Oliveira está iniciando uma investigação que buscará entender detalhes desse deslocamento – o que as crianças aprendem no caminho, qual o seu olhar para a cidade ao ir e vir – em trinta escolas da rede municipal paulistana.

Contudo, o pesquisador Thiago Hérick de Sá, da Faculdade de Medicina do ABC, mostrou que, entre 1997 e 2012, o transporte ativo de crianças e jovens para a escola caiu cerca de 20%, enquanto viu-se aumentar as crianças que fazem esse trajeto em um veículo motorizado.

“Aprendemos cognitiva e sensorialmente. Não há dúvida de que as experiências motoras e sensoriais vão ser muito maiores na cidade do que no carro, e também experiências afetivas – positivas e negativas –, pois o ambiente urbano me incomoda e me ensina.”

Plano de Mobilidade de São Paulo

Aprovado em 2014, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo previa a implementação de um documento que norteasse o planejamento e gestão dos meios e da infraestrutura de transportes urbanos nos próximos 15 anos. De acordo com Tácito Pio da Silveira, diretor de Planejamento de Transportes da SPTrans, o PLanMob tentará reverter a tradição brasileira de priorizar o transporte individual.

Estimular os pedestres a caminharem pelo espaço urbano é uma maneira de construir cidades sustentáveis, resilientes e educadoras.

Silveira reconhece o tamanho do desafio, principalmente em uma cidade que comporta 14% da frota nacional de carros e em que circulam diariamente cerca de 7 milhões de veículos. “Os deslocamentos dos pedestres são fundamentais e extrapolam a questão dos transportes”, acredita. “Inclusive, o PlanMob aponta para a necessidade de criar um único órgão gestor para centralizar as ações referentes às calçadas, hoje diluídas em três secretarias.”

O engenheiro e professor da Universidade Federal do ABC, Francisco Comaru, levou uma nova visão ao debate sobre o esgotamento do sistema viário e automobilista de São Paulo. “É preciso reocupar o centro da cidade, onde se encontra grande oferta de serviços e equipamentos públicos e de emprego.”

Segundo o professor, o processo de esvaziamento dos distritos centrais decorre dos anos 1980, relacionado à desindustrialização e ao crescimento substancial das periferias da cidade, que passaram a concentrar uma enorme densidade humana. “Vejo relação direta entre desigualdade socioeconômica, injustiça social e espacial e as iniquidades em mobilidade, pois quem mora longe é penalizado também por gastar em transporte.”

Para ele, a produção de moradia é uma das estratégias que, a médio prazo, pode diminuir esse movimento pendular do uso do automóvel. “É preciso induzir uma maior densidade para diminuir esse desequilíbrio, olhando para além da mobilidade em si, mas também para o uso e ocupação do solo.”

Estimular os pedestres a caminharem pelo espaço urbano é uma maneira de construir cidades sustentáveis, resilientes e educadoras.

Cidade Educadora

Os incentivos e políticas públicas direcionadas aos pedestres possibilitariam não apenas mais segurança e tranquilidade para quem opta por este modal, como também proporcionariam uma aproximação dessas pessoas entre si e com o espaço urbano em que vivem. “Andar na rua te ajuda a identificar questões relacionadas à vida urbana, criando uma visão cidadã e questionadora de como a cidade foi construída. Flanar e andar livremente nos ajuda a descobrir que a cidade é muito rica em mil outras coisas”, observa Joana.

Thiago Hérick de Sá acredita que estimular o transporte a pé é uma maneira de garantir saúde e qualidade de vida para os cidadãos, construindo cidades sustentáveis e resilientes e possibilitando não apenas o acesso aos seus espaços, mas também a sua transformação.

“Ser pedestre é muito mais que um deslocamento: é um meio pelo qual a gente coloca nosso corpo em contato com o meio social, físico, emocional. É, por fim, uma condição existencial. Ser pedestre é sermos nós mesmos em contato com a natureza e cultura”, finaliza.

(A foto que abre esta matéria é de autoria de rolvr_comp. As demais são de Priscila Kichler Pacheco/EMBARQ Brasil, Caio Duarte, Alexandre Pereira e Victor, respectivamente. Todas via Flickr/Creative Commons)