Publicado originalmente em: Brasil Post
Autor: Mauro Calliari
Data: 02/03/2015
Vamos discutir a “andabilidade”
Enquanto as cidades brasileiras discutem seus planos de mobilidade, é preciso lembrar de quem anda a pé. Depois de décadas de planejamento urbano focado no uso do automóvel, o andar a pé voltou com força às discussões e à prática das grandes cidades pelo mundo.
Nos EUA, berço da cultura do carro, há uma nova geração que está se afastando do carro: em 1970, apenas 8% das pessoas com mais de 19 anos optaram por não tirar carta. Hoje são 23%!
Essas pessoas usam mais transporte público, mas também andam mais. Elas precisam de calçadas melhores, segurança e um cenário urbano minimamente prazeroso. Tudo isso pode ser chamado de “andabilidade”. Sim, a palavra é feia e nem existe em português. Mas o conceito é bom!
Quem aguenta caminhar 500 metros num lugar feio, com muros em volta, pode facilmente andar um quilômetro ou mais, se contar com calçadas seguras, que passam por lugares interessantes, com vitrines, mesas, bares, padarias, lojinhas, toldos, praças, largos, bancos e as surpresas que só quem caminha pode ter.
A vez dos pedestres
O livro Walkable City, de Jeff Speck* é uma boa maneira de contextualizar esse problema. Ele conta os aprendizados que os gestores municipais estão tendo:
• Quem mora nos subúrbios anda menos. Em relação aos seus pares das grandes cidades, essas pessoas são mais obesas e têm mais problemas de saúde.
• A densidade atrai talentos e estimula a inovação. Empresas já entenderam isso: quando estão recrutando jovens, fazem questão de ressaltar o argumento da vida urbana, vibrante, dinâmica, interessante, para atrair funcionários. Cidades competitivas oferecem um Starbucks e uma lavanderia na esquina e não mais o bucolismo idealizado do subúrbio.
• Cidades mais andáveis criam mais valor. O preço por metro quadrado reflete isso: quanto mais andável, mais cara a vizinhança. Incrivelmente, corretores de imóvel já usam o indicador de “andabilidade” criado pela empresa WalkScore para atrair compradores para os imóveis localizados perto de comércio, lojas, amenidades, parques.
• Moradores das cidades densas poluem, relativamente menos. Cada habitante de Nova Iorque polui muito menos do que a maioria das cidades americanas, mais espalhadas. Entretanto, cada habitante de Hong Kong, muito mais densa ainda, emite um décimo de CO2 do que os seus colegas de Manhattan.
Como tornar a cidade mais andável?
1. Adotar o ponto de vista do pedestre em vez do ponto de vista do motorista. A velocidade do deslocamento em carro não pode ser o único parâmetro de avaliação. Hoje, nossas rádios ficam colocando boletins a cada cinco minutos com o número de quilômetros de congestionamento, esquecendo-se de que dois terços dos deslocamentos de S.Paulo são feitos a pé ou em transporte público. As faixas de pedestre não podem ser encaradas como interrupções no tráfego e sim como prioridade para os trajetos. No cruzamento da Av. Brigadeiro Luiz Antonio com a Paulista, por exemplo, os pedestres têm que virar à direita, andar uns 20 metros, atravessar e voltar, para continuar seu trajeto. Por quê? Para não “atrapalhar” o trânsito.
2. Entender a “demanda induzida”: mais pistas trazem mais carros. Novas pistas para carros serão sempre preenchidas, como está mostrando a cara e ineficaz reforma da Marginal Tietê, feita há poucos anos a um custo que poderia ter sido investido em transporte público. O inverso também é verdadeiro. Os carros que passavam pelo viaduto Embarcadero em S.Franciso, destruído pelo terremoto de 1989 acharam outros caminhos. Em Cheonggyecheon, em Seoul, 168 mil motoristas trocaram de trajeto ou de transporte quando o viaduto foi destruído para dar lugar a um rio bucólico.Ou seja, invista em transporte público!
3. Colocar os mais fracos longe dos mais fortes. Algo tem que proteger os pedestres dos carros. Às vezes são carros estacionados. Outras vezes é a distância ou árvores. Uma coisa é certa: a velocidade dos carros tem que baixar na cidade. Ninguém quer que seus filhos brinquem numa calçada em frente de uma rua em que os carros passam a 60 km por hora.
4. É preciso discutir estacionamento na cidade. Estacionamento grátis é financiado pelo contribuinte. O giro de clientes é importante para o comércio. Assim, cobrar pelo estacionamento estimula a rotatividade. Numa evolução quântica em relação ao difícil de encontrar e ineficiente cartãozinho da zona azul, cidades mais avançadas já estipulam preços diferentes por tipologia de quarteirão. Quarteirões mais demandados cobram mais. Terrenos com grandes estacionamentos, por sua vez, não devem ocupar a vista da calçada. Vale a pena esconder sua feiúra atrás de fachadas de lojas, por exemplo.
5. Quanto melhor o transporte público, mais incentivo para deixar o carro em casa. É preciso aumentar a urbanidade (pontos de ônibus, acessos), transparência (roteiros e horários), freqüência (10 minutos no máximo; se ônibus não encher, use van) e prazer (“transporte público é uma forma móvel de espaço público”).
6. Bicicletas deveriam ser amigas dos pedestres. Bicicletas ajudam a diminuir o trânsito, são mais saudáveis e menos poluentes. A polêmica das faixas vazias já foi vivida em outras cidades ao redor do mundo. O ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa é direto: “construa as faixas de bicicletas e os ciclistas virão”. Soa familiar? Por outro lado, atenção, nem todas as ruas são adequadas para ciclovias. É preciso pensar na vitalidade do comércio e no traçado urbano.
7. As calçadas têm de ser acolhedoras. Nós, humanos caminhantes, precisamos de calçadas boas, distância dos carros, mas também de acolhimento. Códigos municipais, como o Plano Diretor de São Paulo começou a esboçar, deveriam também incentivar as fachadas amigáveis: toldos, vitrines, lojas pequenas, mesas, reeentrâncias. Queremos uma novidade a cada 5 segundos e não um paredão de 40 metros. E, claro, queremos árvores. Árvores diminuem temperatura, fazem sombra e ainda seqüestram dióxido de carbono, além de melhorar o prazer do caminhar.
Mudanças no estilo de gestão
Se há tantas cidades adotando modos diferentes de pensar, tanto no Brasil com fora, o que falta para bons conceitos virarem boas práticas?
1. Integração de objetivos. É preciso que os órgãos trabalhem em consonância. Quem é o responsável pela andabilidade? O departamento de obras, engenharia de tráfego, subprefeituras, desenvolvimento urbano? Não deveriam ser todos juntos?
2. Medição. Americanos medem tudo. Nós medimos pouco. Qual é o impacto de cada nova ciclovia no movimento do comércio, na redução do trânsito, no número de deslocamentos, etc? É preciso ser mais racional e medir mais, para aprender mais rápido. O que não se mede, não se controla.
3. Testes. A disciplina de teste é algo pouco difundido na gestão pública, mas que as empresas praticam muito bem há décadas. O que sabemos sobre as tantas iniciativas que foram iniciadas na cidade? O que deu certo? O que deu errado? Em pequena escala, é mais fácil medir e resolver os problemas. O que dá certo, implementa-se em grande escala. O que dá errado deveria gerar aprendizado.
4. Estabelecer prioridades. Gestores públicos precisam escolher onde gastar o dinheiro. A tendência de um gestor público é tentar distribuir igualmente recursos. A parte mais difícil de priorizar é justamente essa, deixar algo de fora. Jeff Speck tem um argumento para ajudar a dar coragem: “ao tentar ser universalmente excelentes, muitas cidades terminam sendo universamente medíocres”.
* Walkable City – How downtown can save America, one step at a time, de Jeff Speck. Editora: Farrar, Straus and Giroux, Nova York