Comentário Cidadeapé: O post de hoje é uma republicação do texto de Meli Malatesta, consultora de mobilidade a pé que trabalhou por décadas na CET. Ela discute aqui a metodologia usada pelos órgãos de trânsito para definir os tempos e espaços para pedestres e veículos nos cruzamentos das vias da cidade.
Publicado originalmente em: Pé de Igualdade, um blog do portal Mobilize
Autor: Meli Malatesta
Data: 28/01/2015
Caminhar nas ruas das cidades nos obriga a enfrentar diariamente várias travessias em cruzamentos e interseções, pois elas se repetem a cada cem ou duzentos metros em média. Isto significa, para um percurso cotidiano a pé de 15 minutos, cerca de oito a dez travessias. Contando com a volta, este número duplica, certo? E o que significa para as nós esta ação tão corriqueira?
Atravessar ruas é um momento muito importante: é a hora de negociar a utilização dos espaços e dos tempos urbanos (das ruas e avenidas) com os usuários das outras formas de mobilidade, majoritariamente a mobilidade motorizada: automóveis, motos, ônibus, caminhões, utilitários.
Alguns destes locais têm uma negociação de uso pré-formalizada por sinalização de trânsito (placas, faixa de pedestre, semáforo de pedestres). Mas a maioria não, e o que vale é a equação mental básica que realizamos de forma automática em nosso cérebro: tempo necessário para ir de uma calçada à outra X velocidade do carro que se aproxima. Na maioria das vezes este cálculo funciona. Mas quando falha, o pior resultado é sempre para quem não está pilotando uma pesada máquina motorizada.
No caso dos pontos contemplados com sinalização de trânsito, pode-se afirmar com muita certeza que quem atravessa a pé geralmente não confia muito na faixa de pedestre. Para que isto ocorresse seria necessário haver sempre fiscalização e intensas campanhas de trânsito para garantir seu respeito pelos motoristas.
Mesmo quando as faixas de travessia de pedestres são semaforizadas com foco para pedestres a situação é difícil. Quem está a pé já sabe que vai esperar muito e ter pouquíssimo tempo para atravessar. Isto ocorre porque os critérios para definir a divisão do espaço e do tempo das vias têm pesos e medidas diferentes para pedestres e veículos. Para o fluxo motorizado, a divisão de uso do tempo e do espaço urbano adotada pelas metodologias da engenharia de tráfego considera o fluxo de veículos que passam por hora ou minuto no cruzamento ou interseção e tem como objetivo dar vazão a todos os veículos que esperam em fila.
Já para o fluxo a pé, o tempo do direito de travessia é determinado pelo tempo necessário para se atravessar a rua na faixa de pedestres, independentemente de quantos pedestres estejam atravessando no momento. Considera-se como se houvesse uma só uma linha de frente de pessoas aguardando a travessia, sem levar em conta os que se acumulam atrás na formação do pelotão de espera e muito menos a importante característica de que o fluxo dos pedestres acontece sempre em dois sentidos.
Assim a situação de submobilidade das travessias a pé — com diferentes pesos e medidas envolvidos numa simples e importante operação de divisão do direito de uso dos espaços e dos tempos públicos urbanos — provocam usualmente sensações de surpresa e indignação, que resultam na falta de confiança na faixa, semáforo ou qualquer outra sinalização voltada ao usuário da via que caminha.
Dessa forma, a repetida vivência desta desconfiança acaba por produzir uma rebeldia em relação ao uso dos espaços públicos pelos pedestres. Isso se reflete principalmente na realização das inúmeras travessias diárias na base do “onde e como puder”, contando apenas com as equações mentais de sobrevivência.
Veja também: Onde e como puder: parte II